8 em cada 10 presos na cracolândia têm passagem por tráfico
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Levantamento exclusivo feito pela reportagem com base em dados da operação revela que 82% das 76 pessoas presas sob a suspeita de tráfico de drogas já tinham passagem pelo mesmo crime.
Quando foi preso em flagrante por tráfico de drogas, em junho de 2021, Vitor Manuel Assunção, 64, ouviu a voz de prisão como se fosse a previsão do tempo. Os policiais só foram entender o motivo de tanta calma com a ficha dele em mãos: era a 16ª prisão desde 1991, a quarta sob a suspeita de tráfico de drogas.
Assunção, também conhecido como Espanhol, é uma das 79 pessoas presas pela Polícia Civil na região da cracolândia, no centro de São Paulo, na operação Caronte, deflagrada em abril do ano passado. Assim como ele, outros suspeitos presos na mesma ação possuem uma longa ficha de antecedentes criminais.
Levantamento exclusivo feito pela reportagem com base em dados da operação revela que 82% das 76 pessoas presas sob a suspeita de tráfico de drogas já tinham passagem pelo mesmo crime. Outras três foram presas acusadas por outros delitos, e 26 alvos estão foragidos.
Em depoimento à Justiça, Assunção negou ser dono da droga apreendida e afirmou apenas ter passado a noite na pensão localizada no entorno da cracolândia, alvo de uma das primeiras fases da Caronte.
A operação foi batizada em referência ao barqueiro que, segundo a mitologia grega, conduz as almas do mundo dos vivos até o mundo dos mortos. Ela é apontada pela polícia e por integrantes da prefeitura da capital paulista como a principal razão de o fluxo –nome dado ao local onde os usuários de drogas se concentram– ter migrado para a praça Princesa Isabel no dia 20 de março, após décadas fixado no entorno da praça Júlio Prestes, ambas no centro.
Prender um grande número de pessoas com antecedentes por tráfico já estava no horizonte do delegado Severino Pereira de Vasconcelos, titular do 77º DP (Campos Elíseos), quando começou a planejar a Caronte, no início de 2021.
“É normal o usuário ser usado para o tráfico e havia um entendimento jurídico de que [esses casos] não mereciam nenhuma atenção criminal porque não ofereciam risco à sociedade”, diz.
Dentro desse raciocínio, o delegado conta que pequenos traficantes eram considerados irrelevantes para o Judiciário. Para Vasconcelos, porém, o tráfico na região não seria possível sem eles. Pouco mais de um ano após deflagrada a operação Caronte, a Justiça soltou 16 presos, ou 20% das autuações.
Por isso, um dos grandes esforços das equipes de investigação do 77º DP foi entender o funcionamento dessa estrutura e a função das pessoas. “Se eu entrar lá e pegar uma pessoa com dez pedras e R$ 50 no bolso, ficamos desacreditados. Nosso trabalho tem que ter qualidade porque, senão, como dizem, entre aspas, nós vamos ficar enxugando gelo”, diz o delegado.
A investigação apontou a atuação de sete grupos diferentes na região, e os indiciamentos dos suspeitos se concentraram em três tipos de crime: tráfico, associação para tráfico e organização criminosa.
Para a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, o número de pessoas presas na cracolândia com antecedentes por tráfico é algo esperado por se tratar de um local que funciona há quase 30 anos da mesma forma e com forte participação do crime organizado.
“Hoje você tem uma geração que nasceu, cresceu, viveu e vai morrer na cracolândia. A cracolândia tem 25, 27 anos. São pessoas que se envolvem no crime e quando, eventualmente, cumprem pena e saem do presídio, elas voltam para lá.”
Isso ocorre, ainda segundo ela, basicamente por dois motivos: o sistema prisional brasileiro não consegue recuperar a massa carcerária e, também, a crise econômica do Brasil não oferece oportunidades para quem quer recomeçar.
“A gente não tem emprego nem para quem tem bons antecedentes, imagina para quem acabou de sair do presídio. Ele retorna para mundo dele, ou vender para consumo ou para conseguir sobreviver e, nesse momento, acaba em alguma oportunidade sendo preso de novo. É um ciclo que se retroalimenta.”
A advogada Sandra Jardim, procuradora aposentada, também vê o retorno de uma pessoa ao tráfico como, muitas vezes, um caminho natural, dada a falta de oportunidades para quem deixa o sistema carcerário.
“É uma atividade lucrativa. O cara estava lá, foi preso, mas ele tirava por mês R$ 3.000, R$ 4.000. Ali ele não tem como arranjar emprego e volta para o tráfico”, avalia.
Jardim diz ter ficado impressionada com a grande quantidade de pessoas presas sob a suspeita de tráfico na operação Caronte. Mas, na sua visão, o ideal é que nessa lista estivessem também os grandes traficantes que abastecem a cracolândia.
“Óbvio que eu não acho ruim essa operação, mas acho ruim a forma como se desenvolveu em relação aos usuários, que precisam de uma solução de saúde pública.”
Para o coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo), Rildo Marques, a maioria das prisões efetuadas pela operação Caronte é de usuários que traficam para manter o vício.
Como é grande volume de prisões feitas pela Caronte, a defesa dos réus tem recebido ajuda de um convênio entre a Defensoria Pública e a comissão de Direitos Humanos da OAB.
“Nós temos observado a operação Caronte com muita preocupação. A maneira como a polícia tem agido contendo os usuários como se fosse um campo de concentração é uma tremenda violação da dignidade humana”, diz Marques.
Cerca de três anos antes de integrar a lista de presos pela operação Caronte, Gustavo Pereira de Souza tinha sido preso por tráfico na própria cracolândia por equipes do Denarc (divisão de combate ao narcotráfico). A defesa do réu diz que ele frequenta a cracolândia por ser usuário de drogas, não traficante.
“Aduz o Ministério Público que referido denunciado [Souza] é possuidor de vasto histórico criminal quando menor de idade e que o mesmo foi preso em flagrante em 2019 por tráfico de drogas na região da cracolândia, para onde retornou ao ser liberado”, diz trecho de decisão judicial recente que lhe negou liberdade provisória.
O chefe dos investigadores do 77º DP, Claudio Helio Alkimim Mota, diz que há um senso comum de criticar o Judiciário pela soltura de presos. Para ele, porém, muitas vezes, a culpa não é do magistrado, mas da investigação feita de forma precária.
“A gente não sabe as circunstâncias do que foi apresentado para o juiz. Às vezes é aquele flagrante mal elaborado, que a única prova que se tem é a prova testemunhal. É exatamente o preço da investigação. Conseguir levar para o juiz não só a prova testemunhal, mas também um monte de coisas.”
É exatamente isso, ainda segundo o policial, que a Caronte tenta conseguir.
“Quando você leva a prova testemunhal, a apreensão do objeto, imagens, uma série de informações mais robustas, isso facilita a vida do Judiciário. Dá segurança para o juiz. Porque, na dúvida, absolve-se.”
No caso da operação Caronte, ainda segundo a polícia, as investigações conseguiram demonstrar o funcionamento de uma organização criminosa.
“A gente mostra para o Judiciário que a pessoa cooptada pelo tráfico é um traficante com vários perfis”, diz Mota, citando que há quem faça a “travessia” da
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