Djokovic é o maior culpado, mas tem sócios em capítulo constrangedor do tênis
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Celebrado por muitos pelas decisões de barrar o tenista, o governo australiano também foi duramente criticado pela imprensa e opinião pública ao longo do processo
Nos últimos anos, Novak Djokovic deu passos sólidos para ser considerado o melhor tenista da história. Ao mesmo tempo, o sérvio arruinava sua imagem com uma sequência de comportamentos reprováveis.
Desde o início da pandemia, o número 1 do mundo manifestou desconfiança em relação às vacinas, propagou tratamentos sem respaldo científico, promoveu torneios que desrespeitaram medidas sanitárias, foi desclassificado do US Open por acertar uma bolada na garganta de uma juíza e ficou marcado pela falta de espírito esportivo nas Olimpíadas de Tóquio.
Em todos esses casos, o atleta pagou sozinho pelos próprios pensamentos e atitudes. Quando reconheceu estar errado, o que nem sempre ocorreu, restou se dizer incompreendido.
No episódio que culminou com sua deportação da Austrália, Djokovic achou com quem dividir a culpa e ampliar o constrangimento da mais ruidosa de todas as polêmicas da carreira. Longe do papel de vítima que o tenista e sua família costumam pintar, ele possui sócios desta vez.
É necessário lembrar que o sérvio poderia ter evitado toda a celeuma das últimas semanas com uma medida -que deveria ser- simples: vacinar-se contra a Covid-19. Senão por convicção, ao menos por solidariedade em uma pandemia que já matou 5,5 milhões de pessoas no mundo.
Fosse um ferrenho defensor das liberdades individuais disposto a lutar contra a exigência da vacinação para entrar num país, adiaria a luta pelo recorde de títulos de Grand Slam em nome do que acredita.
Djokovic não fez nem uma coisa nem outra. Buscou uma brecha para jogar o Australian Open sem estar vacinado e a encontrou na lista de isenções médicas da Tennis Australia (federação do esporte no país) e do governo estadual de Victoria.
Não se sabe quais eram os seus planos até 15 de dezembro de 2021, mas um exame PCR realizado no dia 16, na Sérvia, colocou-o de volta no jogo ao apresentar resultado positivo. Os painéis de médicos indicados pela federação e pelo governo vitoriano aprovaram sua dispensa de apresentar uma prova de vacinação para entrar no país por causa do contágio recente.
O mundo não soube do teste positivo na ocasião porque Djokovic não divulgou. Em vez de se isolar imediatamente, ele compareceu a uma entrevista com sessão de fotos marcada para o dia 18, sem usar máscara nem avisar o jornal francês L’Équipe sobre a infecção.
“Não queria decepcionar o jornalista, mas assegurei-me de me distanciar socialmente e usar uma máscara, exceto quando minha fotografia estava sendo tirada”, tentou justificar. Pegou tão mal que levou até a primeira-ministra sérvia, Ana Brnabic, a repreender o herói nacional.
Só quem poderia observar a situação como estranha àquela altura eram os que sabiam do teste positivo, federação australiana e governo estadual incluídos, porém não há registro de que tenham agido. É por causa do comportamento dessas entidades, além do oscilante papel do governo australiano, que Djokovic não carrega a responsabilidade pela longa novela sozinho.
Ao longo dos últimos meses, a possibilidade de não vacinados disputarem o Australian Open foi amplamente discutida no país, principalmente por causa do sérvio.
A Tennis Australia estava temerosa de perder a participação do número 1 do mundo, nove vezes campeão do torneio, e foi permissiva até onde pôde com um injustificável complexo de inferioridade. Por muito tempo, o evento de fato foi o “primo pobre” dos quatro Slams, visto como distante e pouco atraente, mas essa percepção claramente mudou nas últimas décadas.
Além de ter ignorado o comportamento errático de Djokovic, a federação desconsiderou dois emails enviados em novembro por membros do governo australiano para o diretor do torneio, Craig Tiley. Neles, as autoridades federais de saúde afirmaram que uma infecção recente de Covid-19 não é critério para a dispensa de vacina na chegada ao país.
Celebrado por muitos pelas decisões de barrar o tenista, o governo australiano também foi duramente criticado pela imprensa e opinião pública ao longo do processo.
Antes do sérvio, outros dois participantes do torneio usaram a mesma isenção concedida a ele e tiveram sucesso na imigração. Foram “descobertos” e deixaram o país sem apelar na Justiça apenas depois que o episódio com o número 1 do mundo veio à tona.
O alerta só foi aceso na cúpula política no dia 4 de janeiro, quando Djokovic publicou nas redes sociais uma foto no aeroporto e uma mensagem na qual dizia ter conseguido a isenção.
A enorme repercussão negativa levou o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, a mudar de tom abruptamente. Horas após ter se esquivado ao dizer que a questão era responsabilidade de Victoria, ele afirmou que o tenista não poderia entrar no país caso não comprovasse os motivos para a dispensa da vacina.
Na chegada a Melbourne, Djokovic passou quase oito horas sob interrogatório no aeroporto, incluindo toda a madrugada do dia 6, e se mostrou confuso sobre por que a garantia que ele havia recebido não era reconhecida pelo governo federal. Praticamente sem acesso ao seu telefone e a pessoas que o pudessem ajudar na imigração, teve o visto cancelado e foi enviado para um hotel de detenção.
“Regras são regras”, disse Morrison em tom triunfante, na tentativa de lustrar com transparência e impessoalidade um processo que se revelou um grande bate-cabeça, com trocas de acusações entre autoridades do país a poucos meses de um processo eleitoral.
A ideia do governo australiano era que o tenista fosse deportado o quanto antes, mas seus advogados obtiveram uma vitória em audiência na segunda (10), com a devolução do passaporte e a autorização para o tenista ficar no país.
O juiz Anthony Kelly não entrou no mérito da exigência de vacinação ou das isenções. Considerou que o cancelamento do visto não era razoável pela forma como o processo de imigração foi conduzido por agentes da Força de Fronteira Australiana.
A decisão passou para as mãos do ministro da Imigração, Alex Hawke, que na sexta (14) optou por usar seu poder discricionário para anular novamente o visto. O jogador, na visão do governo, representaria um risco para a saúde e a ordem na Austrália, com a possibilidade de estimular movimentos antivacina no país.
Não era uma posição tão fácil de ser justificada sob esse pretexto, principalmente após se passarem quatro dias em que o líder do ranking circulou por Melbourne e foi à quadra treinar mais de uma vez.
Por outro lado, como deixá-lo jogar sem cumprir critérios de entrada enquanto outros, na mesma condição, foram expulsos? Com a opinião pública majoritariamente contrária a Djokovic, segundo pesquisas da imprensa local, e cerca de 90% da população adulta do país vacinada, seria mais um gesto encarado como sinal de fraqueza.
Na Justiça, a discussão original sobre isenção de vacina passou a ser ignorada. A Corte Federal analisou que Hawke tinha poderes para determinar o cancelamento, sem entrar no mérito dos motivos, e o atleta por fim acabou deportado.
O Australian Open poderia ter sido o palco da busca de Djokovic pelo recorde de 21 troféus de Grand Slam, portanto todas as partes saem feridas desse enorme constrangimento. A organização do torneio continua preocupada se perderá prestígio no circuito, e os governos podem ficar apenas aliviados após semanas de exposição e queda de credibilidade.
Já o candidato a melhor tenista da história deixou sob escolta o país no qual é o maior vencedor, apontado como danoso para a saúde pública em meio a uma pandemia. Consciente disso ou não, tornou-se um ícone para o movimento antivacina global.
Ele jogará daqui para frente como pária na visão de muitos, sob ameaça de vaias constantes -e apenas nos torneios que não exigirem vacina. Valeu a pena a tentativa de ser mártir? Djokovic pode ser orgulhoso e nunca admitir, mas será difícil convencer de que sim, valeu a pena.
| IDNews® | Folhapress | Via NMBR |Brasil