Mulheres não têm canal efetivo para denunciar assédio no serviço público, aponta pesquisa
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Essa falta de estrutura pode afastar, e com isso calar, as vítimas.
O funcionalismo público federal não possui um canal centralizado para receber denúncias específicas de assédios moral e sexual, que têm natureza mais sensível que outros tipos de queixas. Essa falta de estrutura pode afastar, e com isso calar, as vítimas.
Essa é a conclusão da advogada e consultora para equidade de gênero Myrelle Jacob em sua dissertação de mestrado, a ser concluída em novembro. O estudo começou há dois anos como um trabalho de consultoria para o Banco Mundial e analisou os mecanismos de denúncias adotados por estados da federação. O objetivo do estudo avança agora para o Executivo Federal.
A pesquisadora explica que o estatuto que regulamenta a parte disciplinar dos servidores federais, a lei 8.112/90, não prevê o assédio como infração e nem como conduta passível de punição.
Apesar disso, há diversos canais para denúncias espalhados por órgãos federais. Isso, porém, é um problema, de acordo com a advogada.
“Causa mais confusão. Com a falta de canal específico, a reclamação pode se perder, ir para o lugar errado ou até mesmo parar nas mãos do agressor. A servidora não sente confiança”, diz Myrelle.
Outro contratempo é a gestão interna dos processos administrativos e disciplinares nos órgãos federais não contar com profissional especializado em reconhecer e coletar provas válidas para abrir um processo. Essa situação deixa as servidoras desprotegidas, em sua opinião.
“O funcionário [que recebe a denúncia] não consegue instruir e dar o suporte inicial à vítima. Em geral, ele nem sequer sabe em qual conduta do estatuto aquela situação se encaixa para que resulte em punição. Esse tema não é tratado com a devida importância”, diz a pesquisadora.
O percentual de denúncias envolvendo assédio sexual aumentou em 2018 e 2019, de acordo com dados sobre os processos administrativos disciplinares (PADs) que Myrelle usou na pesquisa, disponíveis no Portal de Dados Abertos da CGU (Controladoria-Geral da União), obtidos via ouvidoria.
Em 2017, os PADs de queixa sexual correspondiam a 12,6% dos casos de assédio. No ano seguinte, esse número saltou para 39,2%, chegando ao ponto mais alto em 2019, com 48,8%. A maior parte foi encerrada sem punição. O arquivamento é um dos principais motivos para a baixa responsabilização.
As denúncias, porém, diminuíram nos dois anos seguintes. Uma das explicações seria o trabalho remoto, mais frequente a partir de 2020 por causa da pandemia, de acordo com Vera Monteiro, professora de direito administrativo da FGV (Fundação Getulio Vargas) e conselheira do Instituto República.org.
“Embora a Controladoria já tentasse centralizar os dados de assédio, não havia obrigação dos órgãos federais comunicarem à CGU da abertura desses processos até 2018”, diz a professora.
Segundo Vera, é preciso cautela na análise. “Provavelmente essa realidade é até mais cruel. Se houvesse uma base única desses dados, teríamos um recorte mais fiel.”
A não responsabilização e o arquivamento podem ocorrer, ainda, pela dificuldade na produção de provas. “Situações comuns nos casos de assédio poderiam ser minimizadas com campanhas informativas”, diz Myrelle.
Ela lembra casos recentes, do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães -que renunciou após acusações de assédios sexual e moral contra ele virem à tona -, e do anestesista flagrado estuprando uma mulher na mesa de parto.
“É desesperador que uma filmagem daquelas tenha que ser feita para que as enfermeiras [que já desconfiavam da conduta do médico] fossem ouvidas. A vítima teve seu vídeo exposto na internet. Mas foi um ato de desespero das funcionárias do hospital para que o suspeito pudesse receber a punição”, afirma Myrelle.
ASSÉDIO NO TRABALHO
A assessora jurídica Maria (nome fictício) conta que sofreu assédio moral no trabalho. Ela tem receio de sofrer represálias no órgão público onde atua há anos.
Recentemente houve mudança na gestão e Maria diz que passou a sofrer importunação da nova chefe, que a chamava em seu escritório para questionar seus pareceres e mandar refazê-los.
Uma angústia começou a tomar conta de Maria toda vez que a chefe chamava seu nome.
Ela começou a duvidar da sua competência, o que abalou sua autoestima. Há um mês, ela iniciou terapia para superar o trauma, já que ainda não teve coragem de denunciar por não se sentir segura.
Denunciar a importunação é um tema relativamente novo, segundo Myrelle. Ela explica que só em 2001 o assédio sexual em local de trabalho foi considerado crime no Brasil.
Desde então, das 27 unidades federativas, apenas 4 incluíram o assédio sexual e moral em seus estatutos: Distrito Federal, Mato Grosso, Goiás e Tocantins -esse último apenas o moral.
“A expectativa é que todos os estatutos reformados após essa lei incluam pelo menos o assédio sexual, mas isso não aconteceu”, diz a advogada.
Myrelle cita um caso que considera positivo no DF. “Eles criaram uma comissão que faz triagem das denúncias de assédio. Não é um canal único, mas hoje é o que temos de mais moderno.”
A professora da FGV afirma que assédio causa prejuízo ao Estado. Para Vera, atos que restringem as ações e as iniciativas dos funcionários vão contra a produtividade.
“Tende a gerar servidores e gestores ausentes, menos engajados e menos eficientes. Isso prejudica a prestação do serviço público ao cidadão. Vira um sistema deficiente, um Estado menos eficiente.”
A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos, afirma que recebe, examina, encaminha e acompanha as providências relativas a denúncias e reclamações sobre violações de direitos humanos e violência contra a mulher.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afirma que as denúncias de assédios sexual e moral são realizadas pela ouvidoria que, segundo a nota, é um canal sigiloso e confiável onde a vítima tem segurança para denunciar e receber o retorno devido sobre queixas.
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