Como resolução que restringe uso médico da Cannabis pode afetar pacientes
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De acordo com a nova norma (2324/2022), a Cannabis só poderá ser usada no tratamento de epilepsia refratária
Uma nova resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), publicada no Diário Oficial na última sexta (14), limita no país o uso médico da Cannabis sativa, mais conhecida como maconha.
De acordo com a nova norma (2324/2022), a Cannabis só poderá ser usada no tratamento de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa. E só pode ser usado o canabidiol, o CBD, um dos cerca de 500 compostos da planta.
O texto veda a prescrição de “quaisquer outros derivados” da maconha e a utilização para mais indicações terapêuticas só poderá acontecer em estudos clínicos.
Médicos também estão impedidos de ministrar cursos e palestras sobre o tema. A participação dos profissionais fica restrita ao ambiente científico, e apenas em congressos vinculados à AMB (Associação Médica Brasileira).
A resolução criou um furdúncio no setor. Com receio de punições, que podem variar de uma advertência à cassação do registro profissional, médicos estão suspendendo consultas, atendimentos, cursos e palestras. Na outra ponta, pacientes temem interrupção de tratamentos.
Profissionais do setor falam em censura e definem a resolução como um enorme salto para trás. Para especialistas, a nova orientação representa um grave retrocesso, que coloca o Brasil na contramão de evidências científicas mundiais.
“Existem mais de 30 condições médicas com estudos em curso e tratamentos efetivos, como no caso da doença de Parkinson, dores crônicas e distúrbios do sono”, afirma Maria Eugênia Riscala, CEO da Kaya Mind, empresa de consultoria sobre Cannabis. Para a executiva, um dos pontos mais críticos da resolução é a falta de clareza do que irá acontecer com os pacientes que hoje já estão fazendo uso e tendo bons resultados com esses produtos.
“Estimamos que por volta de 160 mil pessoas façam o tratamento com produtos à base de Cannabis hoje no Brasil”, observa Riscala. Mas, segundo ela, o impacto real será maior, por afetar também quem viria a utilizar nos próximos anos.
Com uma regulamentação ampla, a projeção da Kaya Mind é de que 6,9 milhões de pacientes poderiam se beneficiar de tratamentos com Cannabis medicinal. “O número de pacientes vem dobrando nos últimos anos”, informa a CEO.
TRATAMENTOS INTERROMPIDOS
Patrícia Boscatto, 47, não sabe ainda se poderá continuar com o tratamento da sua filha, Isadora, de 13 anos. A menina usa medicação à base de Cannabis desde 2019 por causa do comportamento agressivo. Ela tem síndrome de Down, TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), TOD (transtorno opositor desafiador), autismo e fissura labiopalatina (má formação dos lábios e da região do céu da boca).
“Por causa da dificuldade em se comunicar, ela se expressava com o corpo, batendo”, explica Boscatto. Ela tentou diferentes tratamentos, a filha chegou a tomar seis tipos de medicamentos ao mesmo tempo, mas sem sucesso. Em 2018, por causa da piora na agressividade, Isadora sofreu maus tratos de uma professora.
Boscatto chegou até a Cannabis medicinal por indicação de uma amiga e após quatro meses de uso, os resultados no comportamento da filha apareceram. “Ela começou a falar melhor, a se concentrar mais, melhorou a participação nas atividades na escola, passou a interagir melhor com professores e colegas”, diz.
Por causa da sua trajetória com a filha, hoje ela presta acolhimento a outros pacientes que buscam tratamento com Cannabis. Entre eles, alguns familiares, que também não sabem se poderão continuar com o uso.
O pai de Boscatto, de 82 anos, após pegar Covid-19, começou a apresentar comportamento agressivo e agitação. Após avaliação médica, foi diagnosticado com Alzheimer e iniciou um tratamento com Cannabis, que melhorou até as dores do joelho, provocadas pela artrose, comemora a filha.
“Ele teria que fazer uma cirurgia que, devido ao uso da Cannabis, foi postergada”, diz Boscatto. Pela idade e pelo quadro de melhora do problema, ela conta que médicos avaliam que a cirurgia nem seja mais necessária.
OBSCURANTISMO CIENTÍFICO
Para o neurocirurgião Pedro Pierro, um dos primeiros prescritores de Cannabis medicinal do Brasil, a resolução é desumana. “Restringe somente o uso para o canabidiol, mas e os pacientes com câncer que usam THC [outra substância presente na planta] para controle dos efeitos adversos dos quimioterápicos?”, indaga o médico. “Como explicar que o tratamento deles será interrompido?”, diz.
Na opinião do especialista, o descompasso da resolução com autorizações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uso de Cannabis provoca uma insegurança desnecessária entre médicos e pacientes.
O neurocirurgião também critica a proibição de médicos ministrarem cursos e palestras. Segundo ele, impedir a educação é obscurantismo científico. “Não é apenas proibir, mas apagar a luz para a ciência.”
Além da falta de respaldo científico, o médico destaca a contradição do conselho. “O mesmo CFM que restringe a utilização de canabinoides para uso off-label [sem bula] é o que defendeu a liberdade de prescrição médica [também off-label] de medicamentos sem eficácia alguma durante a pandemia de Covid-19.”
Para o médico Mauro Araújo, de Belém (PA), faltou ao CFM avaliar os trabalhos científicos publicados sobre Cannabis. “Trabalhos pré-clínicos e clínicos mostram as vantagens do uso, mesmo que seja compassivo [quando não há medicação eficaz], em muitas patologias”.
Araújo acrescenta que a resolução também ignorou evidências de instituições médicas mundiais, como as do Canadá e de Israel, que já fazem uso medicinal com bons resultados. Tampouco foram considerados os resultados dos pacientes que já estão usando no Brasil e a melhora da qualidade de vida que estão tendo, prossegue o médico. “Mesmo com o aumento do número de prescrições não houve relato de efeitos adversos graves.”
“É um retrocesso por parte do conselho, ignorando evidências científicas e empíricas, inclusive indo na contramão dos principais órgãos sanitários e de fiscalização do mundo: Brasil, Alemanha, Israel, Estados Unidos, Canadá, França e outros”, avalia a CEO da Kaya Mind, Maria Eugênia Riscala.
TEVE CONSULTA PÚBLICA
Críticas à parte, vale destacar que o CFM, antes de publicar a atual norma, instaurou uma consulta pública direcionada aos médicos regularmente inscritos, mas a adesão não foi a esperada, segundo o advogado Leonardo Sobral Navarro, especialista em direito médico e da saúde.
“Os médicos que hoje lamentam o texto da resolução não participaram e não participam das comissões e da administração do seu órgão de classe ou da administração dos conselhos regionais”, diz. Para Navarro, a presença dos profissionais que prescrevem Cannabis tem sido mais nas redes sociais do que nos debates no CFM.
Na análise do advogado, esse comportamento colaborou para a resolução restritiva do CFM. Empresas que exploram o setor cometeram erros graves, como se fosse uma área sem regulação, e médicos foram envolvidos, diz Navarro. “São substâncias sujeitas a um controle especial, têm regras mais rígidas.”
“Absurdos foram cometidos, há médicos respondendo processos por prescrição indevida, interação com empresas, vinculação com marcas, exposição de pacientes e até quebra de sigilo”, detalha o especialista.
Mas o advogado reconhece que a resolução, por outro lado, não considerou os avanços terapêuticos que os derivados da Cannabis proporcionam em diversas patologias. “Esse ponto precisa voltar a ser discutido”, pondera.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, a resolução anterior do CFM, de 2014, já limitava em muitos aspectos a atuação dos médicos. Por exemplo, a indicação da prescrição apenas do canabidiol em um mercado com quase dois mil produtos disponíveis para o uso no Brasil, de acordo com mapeamento da Kaya Mind.
O levantamento considerou os produtos nas farmácias, via importação e das associações autorizadas, 52% deles do tipo full spectrum, ou seja, que oferecem outros canabinoides terapêuticos além do canabidiol.
“Os médicos veem a melhora dos pacientes com o uso da Cannabis medicinal, com diferentes espectros, cada dia mais e para diferentes condições, das mais severas as mais leves”, ressalta a CEO da Kaya Mind. Para ela, a resolução do CFM já estava e segue desatualizada em relação ao que centenas de milhares de pessoas vivem diariamente.
CAÇA ÀS BRUXAS
Alguns médicos procurados pela reportagem reclamam de um movimento de “caça às bruxas” contra o setor da Cannabis. “Não é um simples ataque à regulação da Cannabis medicinal no Brasil, a resolução é um ataque à autonomia do médico em um nível sem precedentes”, criticou uma fonte que não quis se identificar por temer represália do CFM.
Mas, para o advogado Emílio Figueiredo, da Rede Reforma e do Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente, não há motivos para profissionais interromperem os tratamentos. “Médicos não devem temer exercer a medicina utilizando as ferramentas terapêuticas que julgam adequadas conforme o caso clínico, inclusive a Cannabis, pois estão protegidos pelo código de ética médico.”
“A decisão do tratamento é do médico com o paciente”, garante Figueiredo. “Parece que o conselho está se arvorando a controlar a prática da medicina em desacordo ao código de ética médico, que garante a autonomia profissional ao médico na definição do tratamento adotado”, conclui o advogado.
Procurado, o CFM não respondeu aos questionamentos.
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