Onde estão os ex-CEOs da Americanas, um mês depois do escândalo de R$ 20 bilhões?
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Na pauta, a crise da Americanas -uma das maiores varejistas do país que, em fato relevante divulgado na noite do dia 11, assinado pelo próprio Rial (então presidente da empresa), anunciava a existência de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões.
ECONOMIA – AMERICANAS
Era a tarde de 13 de janeiro de 2023. O então presidente do conselho do Santander no Brasil, Sergio Rial, 62, convocou uma reunião com representantes de outras instituições financeiras.
Na pauta, a crise da Americanas -uma das maiores varejistas do país que, em fato relevante divulgado na noite do dia 11, assinado pelo próprio Rial (então presidente da empresa), anunciava a existência de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões.
No mesmo comunicado, o executivo dizia que renunciava ao comando da varejista e passaria a atuar como assessor dos três principais acionistas da Americanas -Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, sócios no 3G Capital e, até o final de 2021, controladores da varejista.
Na reunião convocada por Rial no Santander -com quem a Americanas tem uma dívida de R$ 3,65 bilhões-, ele propôs aos bancos um “haircut”, expressão usada no mercado financeiro para indicar um desconto nas dívidas de uma empresa em dificuldades. Os bancos, irritados, sem entender ainda o que significavam as tais “inconsistências contábeis”, negaram qualquer acordo.
Entre os maiores credores da varejista estão, além do Santander, Bradesco (R$ 4,51 bilhões), BTG Pactual (R$ 3,5 bilhões), Itaú (R$ 2,73 bilhões) e Safra (R$ 2,52 bilhões). Na noite do mesmo dia, as instituições foram surpreendidas com o pedido de tutela de urgência cautelar feito pela Americanas junto à 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que na prática impedia que os ativos da varejista fossem bloqueados por credores.
Começava, oficialmente, a briga dos grandes bancos com a Americanas.
INTELIGENTE, DEDICADO E VAIDOSO
Rial, o mensageiro, foi um dos primeiros a serem punidos: alguns dos banqueiros presentes ao encontro entraram em contato com Ana Botín, presidente do grupo Santander, reclamando da postura do executivo diante do evidente conflito de interesses , segundo executivos próximos dos participantes da reunião.
A herdeira do banco espanhol teria exigido, então, que Rial -responsável, no passado, por levar a filial brasileira a bater recordes de lucro- renunciasse ao cargo de presidente do conselho.
O anúncio foi feito em 20 de janeiro, um dia depois de a Americanas entrar em recuperação judicial, com dívidas declaradas de R$ 43 bilhões. A Folha tentou contato com Rial, mas ele não respondeu aos pedidos de entrevista.
A reportagem também entrou em contato com o Santander para saber se a renúncia do executivo foi determinada pelo comando do banco na Espanha, mas a instituição informou que não vai se manifestar a respeito.
Um mês depois de trazer o escândalo à tona e deixar o comando da Americanas, Rial continua assessorando o trio do 3G, mas agora nos bastidores, de acordo com executivos próximos.
Teriam partido dele as indicações da Alvarez & Marsal, que assumiu a reestruturação das operações, e do banco Rothschild, à frente da negociação com as instituições financeiras.
O ex-CEO não vai mais à sede da companhia, mas se mantém ativo, de acordo com banqueiros ouvidos pela reportagem. Tem procurado credores e jornalistas para tentar diminuir o tom das críticas ao caso Americanas.
Enquanto era presidente do conselho do Santander, ele instruiu funcionários do banco a não comentar o escândalo, nem oficialmente ou em condição de anonimato.
Um banqueiro próximo a Rial diz que foi muito grave o conflito de interesses ao qual ele se expôs -o que poderia macular sua trajetória de sucesso no banco espanhol. Segundo esse interlocutor, Rial é muito inteligente e dedicado. Mas também muito “vaidoso” e “egocêntrico”, o que pode ter contribuído para que ele aceitasse o convite do trio do 3G, sem medir exatamente as consequências de expor seu nome ao escândalo.
Passar a ser o “homem de confiança” dos três bilionários brasileiros, referências mundiais em gestão, e ainda ser muito bem remunerado por isso, pode ter feito sombra aos riscos.
Até hoje o mercado questiona desde quando Rial sabia do rombo contábil que acabou anunciando. Ele foi apresentado como o novo presidente da Americanas cerca de cinco meses antes de assumir o cargo, em janeiro. A distância entre o anúncio e a posse pode indicar que o executivo está sendo preparado, dentro do processo de transição do comando.
Nesse intervalo, as ações da varejista se valorizaram, à espera do choque de gestão de Rial. Altos executivos da Americanas venderam suas ações no mercado, embolsando R$ 244,3 milhões.
‘SUJEITO OCULTO’ QUE DEIXOU POUCAS MARCAS APÓS QUASE 30 ANOS DE CASA
Rial veio para assumir o lugar de Miguel Gutierrez, 60, o executivo “prata da casa” na Americanas, onde chegou no começo dos anos 1990. Carioca, engenheiro formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Gutierrez passou os últimos 20 anos no comando da varejista, acumulando a função com a diretoria de relações com investidores.
A Folha falou com fornecedores, consultores, especialistas em varejo e prestadores de serviços da varejista. Ninguém havia conversado com Gutierrez, quase um “sujeito oculto” na Americanas. Seu contato com o mercado se restringia a teleconferências com analistas e investidores a cada três meses, na divulgação de balanços da varejista.
Gutierrez era muito próximo de Beto Sicupira, que ocupou a presidência do conselho da Americanas por muitos anos e é hoje um dos acionistas de referência e conselheiro da varejista. Foi ele o integrante do trio de sócios do antigo GP Investimentos (berço do 3G Capital) responsável por desenvolver a empresa, enquanto Marcel Telles fez o mesmo na Ambev.
De acordo com uma fonte que trabalhou próxima a Gutierrez na Americanas, como prestador de serviços, o executivo não dava um passo sem pedir permissão a Sicupira. Não havia autonomia no alto escalão da varejista: as decisões dependiam do ex-controlador.
Mesmo decisões menores, como o pagamento de R$ 50 mil a um fornecedor, só era tomada após pedir anuência ao “Beto”.
O mesmo acontecia com os três diretores afastados no último dia 3, que acumulavam mais de uma década de casa -Anna Saicali (presidente da Ame Digital), Timotheo Barros (vice-presidente, responsável por lojas físicas, logística e tecnologia) e Márcio Meirelles (vice-presidente, responsável pelas áreas digital, consumo e marketing).
Ex-funcionários de alto nível se queixaram de que Gutierrez tratava executivos e funcionários de maneira grosseira e hostil, beirando o assédio moral.
A Folha não conseguiu localizar Gutierrez: ele não mantém redes sociais, não conta com assessoria, e a Americanas diz que o ex-presidente não tem mais qualquer ligação com a empresa.
Na Americanas, onde acumulou quase 30 anos de casa, Gutierrez reproduzia, de certa forma, a postura de Sicupira, conhecido pelo perfil agressivo, diferente dos sócios Lemann e Telles que, embora fossem duros na cobrança por resultados, costumam adotar uma postura mais cordata.
“Delicadeza no ambiente de trabalho nunca foi o forte de Beto Sicupira”, descreve a jornalista Cristiane Correa em “Sonho Grande” (editora Sextante, 2013), livro sobre a história do trio do 3G. “No Garantia se tornaram lendárias as cenas de destempero protagonizadas por ele. ‘Trator’ e ‘dono da verdade’ são algumas das expressões mais usadas por antigos colegas do banco para descrever seu temperamento mercurial. No dia a dia, ele nunca economizou gritos, palavrões e murros na mesa para fazer valer sua opinião. ‘É mais fácil segurar um louco do que empurrar um burro’ é uma das suas frases favoritas”, afirma o trecho da obra.
O Garantia foi o banco comprado por Lemann, onde trabalharam Telles e Sicupira, mais tarde sócios do negócio.
FRIEZA EXCESSIVA DO TRIO PAUTA DISPUTA SANGUINÁRIA ENTRE EXECUTIVOS
Claudio Galeazzi, 81, fundador da consultoria Galeazzi & Associados, que promoveu uma reestruturação na Americanas no final da década de 1990, conta no livro “Sem Cortes”, em parceria com Joaquim Castanheira (editora Portfolio-Penguin, 2019), um pouco do perfil de cada um do trio de bilionários.
“Implacáveis na cobrança pelos resultados, em geral se mostram afáveis no trato com as pessoas no dia a dia. Lemann fala pouco e ouve muito. Dos três, Sicupira é o mais agressivo, enquanto Telles apresenta um perfil mais contemporizador e revela uma fina ironia”, diz ele, que aponta uma “única crítica” ao trio.
“Fora os resultados, nada interessa. É uma frieza excessiva. Em razão disso, cria-se um clima de competição interna sanguinária, como se o sujeito sentado a seu lado fosse um adversário a ser batido. Trabalhei com o GP em várias oportunidades e acredito na meritocracia, porém o conceito poderia ser mais humanizado sem perder a objetividade”, diz Galeazzi, referindo-se ao GP Investments, o embrião do 3G Capital.
“Soa estranho falar em meritocracia humanizada? A diferença está na forma de cobrar e tratar as pessoas, levando em conta o momento de cada uma e as circunstâncias da empresa e do mercado, entre outras variáveis. Isso não significa que a busca pela eficiência seja colocada em segundo plano”, diz Galeazzi no livro.
Depois que o escândalo veio à tona, o 3G Capital -que também tem como sócios os executivos Alex Behring e Roberto Thompson Motta- contratou assessores para entrar em contato com a imprensa a fim de esclarecer que não era o fundo de investimentos, mas sim o trio de bilionários os acionistas da Americanas. A holding LTS Investments representa os três no 3G.
Existem comentários, inclusive, de que a relação do trio estaria abalada depois do caso e que Sicupira estaria sendo responsabilizado pelo escândalo. A reportagem entrou em contato com a assessoria da LTS, que desmentiu qualquer mal-estar entre os três, muito menos uma chance de ruptura.
O consultor e escritor americano Jim Collins, que assina o prefácio de “Sonho Grande”, disse que se surpreendeu com a calma do trio em situações de elevado estresse, como a crise financeira mundial de 008.
“Em momento algum observei pânico, apenas um espírito de avaliação cuidadosa de opções, seguida de decisões calculadas. Em épocas de incerteza e caos, as pessoas muitas vezes querem agir o mais rápido possível, como se isso fizesse a crise ir embora”, escreveu.
“‘Claro que é da natureza humana querer fazer com que a incerteza vá embora’, me disse um deles. ‘Mas esse desejo pode levá-lo a agir rápido, às vezes rápido demais. De onde eu venho, você logo percebe que a incerteza jamais desaparecerá, não importa quais decisões ou ações tomemos. Portanto, se temos tempo para a situação se desenrolar, dando-nos mais clareza antes de agirmos, aproveitamos esse tempo. Claro que, quando chega a hora, você precisa estar preparado para agir com firmeza'”, relata Collins no livro.
É essa hora que funcionários, fornecedores, acionistas minoritários e credores da Americanas aguardam, ansiosamente.
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