Além das festas, festival de Cannes tem filas quilométricas e perrengues
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Para ir a Cannes e realmente aproveitar a extensa programação, é preciso estar disposto a abrir mão do sono e das refeições.
Quem vê os sorrisos de Cate Blanchett e Emma Stone no tapete vermelho pode até pensar que o Festival de Cannes é puro glamour, uma celebração do cinema feita com looks caríssimos, taças de espumante e festas na praia.
Ou, ao menos, uma reunião harmoniosa entre artistas e cinéfilos, em que estes passam os dias vendo filmes dos maiores nomes do cinema mundial, meses antes de eles estarem disponíveis para o público geral. Um sonho em celuloide.
Mas não é bem assim. Por trás da mitologia e do marketing que transformaram o evento, que encerra sua 77ª edição neste sábado (25), num dos eventos mais luxuosos da cultura, há muito perrengue. Tanto para meros mortais, quanto para o alto escalão de Hollywood.
Para ir a Cannes e realmente aproveitar a extensa programação, é preciso estar disposto a abrir mão do sono e das refeições. As primeiras sessões começam às 8h30 e as últimas podem ir até as 2h da manhã. Para entrar na sala, é preciso chegar com antecedência razoável e enfrentar filas, mesmo que o ingresso já tenha sido garantido.
No caso das exibições da sala Debussy, a segunda maior, a fila é feita na rua, o que é um problema quando o Sol forte da Riviera decide aparecer ou quando o tempo muda bruscamente e faz chover sobre os cinéfilos -o clima costuma variar bastante na primavera francesa.
Para as galas no Grande Teatro Lumière, aquelas às quais a equipe do filme comparece, os ingressos são limitados, e é tradição em Cannes que cinéfilos ou moradores da cidade fiquem do lado de fora da sala, por horas, segurando plaquinhas em que pedem entradas.
Isso tudo com a vestimenta exigida para essas sessões -smoking, vestido longo e salto alto, já que o ingresso costuma se materializar em cima da hora. Ao chegar no Palácio dos Festivais às 8h, quando ele abre, já é possível ver gente querendo tíquetes para galas que só acontecerão 12 horas mais tarde, por volta das 20h.
Apresentar um filme no evento também significa se comprometer com uma agenda extensa e apertada, em especial porque estúdios e distribuidores não pagam estadia para que as estrelas permaneçam na Riviera Francesa nos 12 dias de programação.
Elas costumam chegar na véspera ou no dia da première e ir embora no seguinte, cumprindo uma agenda de três diárias que inclui horas de preparação do look do tapete vermelho, a sessão de gala, uma festa de première, sessões de fotos, coletiva de imprensa e entrevistas individuais com jornalistas -que, a depender do tamanho da produção, pode ganhar um dia a mais.
“Não há lugar como Cannes, mas é muita coisa. É excitante e tenso, incrível e estressante, especial e cansativo”, descreveu Jesse Plemons no dia de imprensa de “Tipos de Gentileza”, um dos filmes mais esperados desta seleção competitiva de Cannes. No ano passado, ele passou pela mesma experiência, representando “Assassinos da Lua das Flores”.
Até mesmo Meryl Streep, que não apresentou filme e foi a Cannes apenas para ter sua carreira celebrada com uma Palma de Ouro honorária, brincou com a rotina. “Fui dormir às três da manhã” e “estou de ressaca”, disse ela no painel do qual participou, sem perder a simpatia, mas sugerindo que um levantar da cama mais tarde lhe foi negado.
E para os membros do júri, como Xavier Dolan, presidente na Um Certo Olhar, a história não é muito diferente. Ao ser questionado pela revista francesa Les Inrocks o que nunca esquece de trazer a Cannes, respondeu “ansiolíticos”. E também disse que passou dias chorando na cama depois da recepção amarga de um de seus filmes, “É Apenas o Fim do Mundo”, há oito anos.
Quanto às festas, Gary Oldman, em Cannes para apresentar “Parthenope” na competição, entregou o jogo quando um jornalista disse ter visto o ator animado numa delas. “A verdade é que eu sou obrigado a ir a essas coisas”, disse ele rindo.
São várias as festas que se espalham pela costa azulada da cidade. Os filmes grandes sempre têm uma própria, que costuma ser mais exclusiva, mas há ainda eventos organizados pelo próprio festival e por suas mostras paralelas, marcas de bebidas alcoólicas, grifes de moda, patrocinadores, distribuidoras, produtoras, órgãos públicos e pelas próprias celebridades.
A qualidade das comemorações, a maioria em restaurantes na praia, varia absurdamente. Em algumas, nem há open bar, e é preciso pagar pela própria bebida. Outras, mais caprichadas, têm cardápios temáticos e fartos, além de lembrancinhas.
No meio-termo, formando a maioria, há vinho à vontade e charcutaria. Sempre com DJs e bandas, que sofrem para pôr os convidados para dançar.
No ano passado, a festa após a estreia de “Indiana Jones e a Relíquia do Destino” teve a presença de ninguém menos que Harrison Ford. Mas o astro da franquia ficou poucos minutos por ali, numa área reservada e distante dos convidados da Disney.
E há muita gente que pula as festas, simplesmente porque a escolha fica entre farrear ou ter algumas horas a mais de sono. Roncos, aliás, vão se tornando parte da trilha sonora nas sessões conforme o festival avança, bem como tosses e espirros.
A imunidade não aguenta o ritmo, afirmou uma farmacêutica em frente ao Palácio dos Festivais, enquanto pegava uma caixa de remédio para gripe e dizia que muitos “festivaliers”, como são chamadas os frequentadores do festival, apareceram para comprar o medicamento nessa reta final.
Contribui para isso a alimentação pobre e em horários desregulados. Ao sentar para uma refeição no bairro medieval de Le Suquet, é comum ver homens de smoking e mulheres de vestido tentando se equilibrar em saltos altíssimos nas ladeiras de pedrinhas da parte histórica da cidade, a caminho das galas que acontecem lá embaixo.
Uma loira num vestido prateado, avistada por este repórter, não só conseguiu, como dava mordidas vorazes e apressadas num sanduíche sem graça, daqueles prontos vendidos no mercado. Sanduíches estes que são a base de alimentação de muitos “festivaliers”, em especial jornalistas, que enganam a fome com baguetes de salame, pãezinhos com patê e saladas em marmitinhas plásticas.
Isso porque, há pouco tempo, entre uma sessão de filme e outra, os restaurantes no entorno da sede do evento costumam ficar sempre lotados e com os preços inflacionados. Os ônibus da cidade também enchem no período do festival -há sessões também em outros pontos da cidade-, perturbando a rotina de quem é morador.
O tal Palácio dos Festivais, aliás, pode até ser enorme e opulento, ostentando os sempre belos cartazes da mostra de cinema na fachada, mas divide a parede com um cassino decadente, num contraste que sintetiza bem o que é o Festival de Cannes.
|IDNews® | Folhapress | Beto Fortunato |Via NBR | Brasil