Crise na Ancine espanta grandes estúdios, que fazem filmes sem dinheiro público
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Nesse cenário, há quem consiga se dar ao luxo de recusar se envolver com projetos feitos com recursos vindos da agência
O momento é de crise no audiovisual brasileiro. Uma das razões, além da pandemia, é a escassez de fomento vindo da Ancine, a Agência Nacional do Cinema. Nesse cenário, há quem consiga se dar ao luxo de recusar se envolver com projetos feitos com recursos vindos da agência.
“Neste momento, a O2 optou por não trabalhar com leis de incentivo. É muita insegurança jurídica. A Ancine fica cheia de prestações de contas abertas e você fica sujeito a mudanças do governo”, conta Andréa Barata Ribeiro, sócia da O2 Filmes, produtora de filmes como “Cidade de Deus” e “Dois Papas”.
“A gente acabou de recusar um filme que envolvia dinheiro público'”, diz Barata Ribeiro, que é membro da Academia do Oscar, sobre recursos de fomento da Ancine.
Grandes produtoras nacionais têm conseguido se apoiar no mercado nascente do streaming. Para os produtores independentes, porém, o cenário é mais desolador.
São dois pontos de estrangulamento na agência do cinema hoje. O primeiro é a escassez de novos editais e fomentos para a produção de obras audiovisuais.
O segundo é a insegurança jurídica causada por um passivo de prestação de contas que a agência acumulou e que podem ser reabertas quase duas décadas depois do lançamento do filme –o órgão vem desenterrando algumas e, em certos casos, reprovando projetos antigos.
“A Ancine está paralisada e além disso você fica num imbróglio jurídico que não é seu, com prestação de contas pendurada, que eles não deram baixa. Aí os caras começam a pedir de novo prestações de contas de 15 anos atrás”, diz Barata Ribeiro.
Em maio, a Ancine sinalizou a retomada de investimentos em séries e filmes brasileiros. A agência anunciou que, após ajustes, o Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, contava com R$ 400 milhões para novos investimentos em 2021 e que 65% do passivo de projetos em análise -alguns deles em trâmite desde 2016- estão resolvidos.
O filme “Marighella”, da O2, talvez seja hoje um dos principais símbolos da relação entre produtores de audiovisual e o governo Bolsonaro. Ao menos dois pedidos de recursos para a comercialização do filme enviados à Ancine foram negados. O longa é uma cinebiografia do guerrilheiro comunista.
Enquanto a Ancine não volta ao fluxo que costumava ter, a chegada das plataformas de streaming ao Brasil –e o interesse delas em produzir conteúdo local para o público daqui– fez com que o vácuo deixado pela crise na agência pudesse ser preenchido. A questão é que, segundo a sócia da O2, os efeitos benéficos dos streamings tendem a recair mais sobre as grandes produtoras.
“Quem mais sofre com isso são as produtoras pequenas, que não têm tanto recurso”, diz Barata Ribeiro. “Existem outras leis [de incentivo ao audiovisual], coproduções internacionais. O produtor nunca parou de buscar outras formas, mesmo quando os incentivos [da Ancine] funcionavam.”
“Os streamings hoje têm movimentado o mercado brasileiro, têm gerado empregos e oportunidades incríveis. Mas o streaming não absorve tudo e nem deve”, diz, por email, Fabiano Gullane, da Gullane Filmes, produtora de longas como “Que Horas Ela Volta?”, “Até Que a Sorte Nos Separe” e “Carandiru”.
Gullane, porém, afirma não ter se afastado do fomento da agência. “Trabalhamos bastante com a Ancine e temos muitos projetos ativos, projetos em diversas fases. E temos total interesse em continuar trabalhando por muitos anos com a agência”, diz. “Essa é uma paralisação momentânea da Ancine, um reflexo da demora do governo federal em empossar novos diretores colegiados. A Ancine estava andando muito de lado, de forma insegura.”
Segundo Rafael Neumayr, advogado especializado em audiovisual, não é exatamente correto falar num movimento de produtoras se afastando da agência. “Há poucas produtoras apresentando projetos para a Ancine, mas é porque a Ancine não abriu as portas para essas produtoras”, diz o advogado.
“Os pequenos não estão fugindo [da Ancine], estão desesperados por novas oportunidades”, afirma. “Agora, os grandes, que estão fazendo uma produção de streaming atrás da outra, começam realmente a repensar se vão ou se não vão continuar. Seria ótimo se houvesse uma chance de fuga, mas a gente nem isso tem. O problema está lá na agência e não nas produtoras. Se elas não acessam não é porque não querem, é porque não há o que acessar.”
Mauro Garcia, o presidente da Brasil Audiovisual Independente, a Bravi, diz enxergar um afastamento entre produtoras e Ancine. “Mas acho que é um afastamento temporário. E acho que o aprendizado que houve –de busca de alternativas [de financiamento]– vai ficar. Ninguém vai ficar só dependente do Fundo Setorial do Audiovisual. Todo mundo aprendeu a se mexer”, diz.
Garcia conta que, junto com outras organizações, se empenhou em “contratar um mapeamento de fundos internacionais que aceitam coprodução com o Brasil”. São fundos internacionais, sobretudo europeus, mas também de países como Austrália, pouco usados por produtores brasileiros. N
esse arranjo, as produtoras brasileiras podem entrar com um contribuição minoritária e ainda surfar nas redes de contatos, festivais e canais de distribuição desses possíveis parceiros internacionais. Um entrave a isso, porém, é o dólar valendo R$ 5,50.
Nesses fundos, os brasileiros poderiam entrar com recursos obtidos, por exemplo, de mecanismos de fomento estaduais ou municipais –que nem de longe são capazes de se equiparar ao que a Ancine costumava representar para o ecossistema do audiovisual brasileiro, mas são uma boa ajuda.
Raquel Valadares, integrante da diretoria da API, a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro, fez um levantamento com seus associados para mapear o impacto da pandemia e da crise da Ancine. “Muitas entregaram as sedes, venderam equipamentos, demitiram funcionários, pegaram empréstimos, recorreram aos recursos emergenciais para a cultura da Lei Aldir Blanc quando disponíveis, enfim, deram seu jeito. Mas, de modo geral, a tônica é que as produtoras pequenas tiveram que deixar de lado seus projetos para trabalhar para outras produtoras, às vezes maiores, com projetos em execução”
Segundo Valadares, 86% das produtoras que responderam a um questionário feito no último fim de semana declararam queda substancial de faturamento e 77% ficaram mais de seis meses sem faturamento. Houve casos em que os sócios não conseguiram manter o pró-labore ou tiveram de mudar de área para enfrentar a crise.
Apesar disso, ela diz que há motivos para otimismo. “É de se celebrar que muitas de nós conseguiram executar seus projetos audiovisuais durante esse triênio [2019 a 2021], seja porque eram oriundos de editais regionais, seja porque a contratação de projetos antigos do FSA finalmente saiu.”
Em nota, a Ancine afirma que aprovou o lançamento de “novas linhas de investimento no valor total de R$ 473,2 milhões” e que “em breve um cronograma de lançamentos será divulgado, e a previsão é que os lançamentos se iniciem no fim deste ano”. “Os recursos estão sendo liberados de acordo com o fluxo de seleções e análises, conforme as regras dos editais”, diz a nota da agência. “Não houve descontinuidade ou desinvestimento na atividade audiovisual.”
“Outro ponto importante é que as condições específicas dos editais serão previamente debatidas com um grupo de produtores de notória especialização, no âmbito de uma câmara técnica de produção, a ser divulgada em breve. Na câmara técnica produtores de diferentes regiões e com diversas experiências na atividade audiovisual irão opinar no modelo mais efetivo e eficiente para os próximos editais”, segue a nota.
Além da crise no fomento e a insegurança jurídica, o fantasma da censura ameaça assombrar o setor cultural. Recentemente, um projeto de um festival de jazz antifascista recebeu sinal vermelho para captação em parecer recheado de frases religiosas, por exemplo.
Além de “Marighella”, outro projeto mais recente gerou polêmica ao ter ganhado sinal vermelho da Ancine -um projeto de filme sobre a vida e a trajetória do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi indeferido. A obra já havia sido aprovada em 2018 pela agência.
A justificativa da reprovação foi de que o projeto “dá margem a inegável promoção da imagem pessoal do ex-presidente da República homenageado no documentário, com o notório aproveitamento político, às custas dos cofres públicos”. Na opinião de Maurício Magalhães, sócio da Giros Filmes, que produz “Presidente Improvável”, o documentário sobre FHC, o veto ao projeto na Ancine foi um caso claro de censura.
Para contornar o imbróglio, os sócios da produtora, empresa de 23 anos de estrada, decidiram criar um fundo de investidores e discutir valores de licenciamento do filme com o streaming, que deve ser exibido pela Globoplay. “Esse filme está sendo feito, mesmo com esse processo todo da Ancine. Nós estamos tentando viabilizar por vários caminhos”, diz Magalhães.
Ainda assim, o produtor segue na expectativa de conseguir reverter o veto e captar via Lei do Audiovisual, uma vez que o fundo e o licenciamento com o streaming não conseguiu cobrir todos os gastos necessários para a finalização de “Presidente Improvável”.
Mesmo antes do filme sobre FHC, Magalhães afirma que a sua produtora já vinha se preparando para funcionar em meio ao governo Bolsonaro. “A gente tem que sair um pouco de ficar naquele mecanismo histórico [de fomento público ao audiovisual], que é lícito, maravilhoso para o desenvolvimento do setor e que existe no mundo inteiro. Porém, a gente já achava que esse governo teria esse tipo de reação”, diz.
Segundo Magalhães, embora o governo esteja “asfixiando o setor”, o atual cenário de escassez acabou fazendo “com que a gente saísse de uma zona de conforto”.
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