“Fiquei três semanas trancada”, denuncia vítima de seita no DF
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| IDNews | Via Metrópoles.com/Saulo Araújo
Garota de 19 anos só conseguiu se libertar do cárcere porque pegou celular da líder do grupo escondido e enviou mensagens de socorro ao pai
Durante três semanas, Luana* só viu a luz do sol pela janela fortemente protegida por grades. Na sala de cerca de 10 metros quadrados, a jovem de 19 anos passava as 24 horas do dia tendo como única atividade ler livros bíblicos. Segundo a Polícia Civil do Distrito Federal, Luana foi mais uma vítima da seita suspeita de manter fiéis em cárcere privado. No dia 28 de dezembro de 2018, investigadores resgataram uma outra garota, de 18 anos, mantida presa sob o argumento de que “estava endemoniada”.
O caso foi divulgado somente na segunda-feira (7/1). Ela fazia serviços domésticos na casa da líder do grupo, na Chácara Folhas de Palmeiras, situada às margens da DF-290, no Gama.
Ao Metrópoles, Luana contou detalhes da rotina na seita, que atende pelo nome de Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia, comandada a mão de ferro pela pastora Ana Vindoura Dias Luz, 64 anos, que chegou a ser presa por cercear a liberdade da moça de 18 anos. “Quando decidi que queria sair dali e viver minha própria vida, não deixaram. Fiquei três semanas trancada”, conta Luana.
A jovem diz que sofre de depressão, mas a doença é interpretada por Ana Vindoura e seus seguidores como sinal de que o corpo está possuído pelo demônio. Durante o período de confinamento, Luana só tinha autorização para ir à cozinha e ajudar nas tarefas domésticas. As chaves da casa ficavam sempre em posse de Ana Vindoura. Embora a pastora e os chamados obreiros usem aparelho celular, a maioria dos membros da comunidade não pode ter telefone.
Na chácara, onde vivem cerca de 200 pessoas, não há televisão ou rádio. A doutrinação imposta por Ana Vindoura também proíbe ingestão de qualquer tipo de carne e produtos industrializados. Quem escolhe viver na propriedade tem de abrir mão até do creme dental, porque “faz o dente apodrecer”, segundo a pastora. A higiene bucal é feita a partir de produtos orgânicos. Itens de banho, como sabonete e xampu, não podem conter qualquer traço de química.
Luana conta que começou a morar na igreja com a mãe, em 2016. Em julho do ano passado, a mulher teria iniciado um relacionamento e se mudou, deixando a garota na chácara. Luana passou a trabalhar na fabricação de pães, que eram revendidos em padarias da região. Embora tivesse uma rotina de trabalho, recebia pouco mais de R$ 300 por mês. “Eu não ligava muito porque gostava daquele trabalho e entendia que eu deveria retribuir de alguma forma, já que morava ali. Na minha cabeça, as coisas ficaram mais sérias quando quis sair para procurar emprego e me prenderam”, relata.
A garota só não ficou mais tempo mantida em cárcere graças a um descuido de Ana Vindoura. “Ela dormiu no sofá e eu consegui pegar o celular dela e mandar mensagens para o meu pai pedindo socorro.”
Ao ler o relato da filha, o aposentado Ronaldo Lucas Soares, 60 anos, entrou em desespero. Morador de uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, imediatamente comprou passagem para o DF. Antes, porém, passou em uma delegacia da Polícia Civil de Minas Gerais e registrou boletim de ocorrência. O caso chegou ao Ministério Público mineiro, que, por sua vez, deu ciência à Polícia Civil do DF.
Segundo Ronaldo, Ana Vindoura teria tomado conhecimento da movimentação da polícia e da Justiça e decidiu libertar a jovem a fim de evitar escândalo. “Minha filha parecia um passarinho saindo da gaiola de tanta felicidade. Não fazia ideia que ela estava sem a mãe e passando por essas humilhações. Agora, quero ir até o final para que os responsáveis por esse sofrimento dela sejam punidos”, diz ele, que tenta juntar recursos para pagar um psicólogo para Luana. “Ela não está bem, parece traumatizada.”
Polícia intimidada
O episódio envolvendo Luana ocorreu cerca de duas semanas antes de agentes da 20ª Delegacia de Polícia (Gama) irem à chácara Folhas de Palmeiras resgatar a outra jovem, de 18 anos, que estava presa há quatro meses sob argumento de que “estava endemoniada”.
De acordo com o delegado que conduziu as investigações, Vander Braga, há indícios que comprovaram que a garota era mantida em uma casa com as portas trancadas e janelas gradeadas. “A líder tentou nos enganar, mas insistimos e conseguimos chegar até a jovem. Ela nos contou que estava presa há quatro meses, sem poder se comunicar. Disse que tentou fugir dias antes, mas que acabou sendo pega na mata”, explicou o delegado.
Braga diz ter percebido a influência da pastora no dia em que ele e sua equipe realizaram a operação para libertar a moça e dar voz de prisão à Ana Vindoura. “Umas 100 pessoas tentaram nos intimidar, dizendo que nós não poderíamos entrar na chácara sem mandado de prisão. Expliquei que por ser um crime em andamento, não haveria necessidade e ameacei chamar reforço. Só então eles recuaram e permitiram nosso trabalho.”
Ana Vindoura Dias Luz foi detida no mesmo dia por cárcere privado. Entretanto, acabou liberada no dia seguinte, após audiência de custódia. Segundo a juíza substituta Simone Garcia Pena, da 2ª Vara Criminal do Gama, embora estivesse “evidenciada a materialidade delitiva (…) entendo que a conduta em si não causou significativo abalo da ordem pública nem evidenciou periculosidade exacerbada do seu autor, de modo a justificar sua segregação antes do momento constitucional próprio, qual seja, após o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória”.
Como ré primária, Ana Vindoura foi liberada por meio de medidas cautelares, entre elas a proibição de ausentar-se do Distrito Federal por mais de 30 dias, a não ser que autorizada pela Justiça; proibição de mudança de endereço sem comunicação prévia e comparecimento mensal ao juízo processante.
Segundo Ana Vindoura, as acusações contra ela são “prenúncio do apocalipse” e “obra de satanás”. “Essas pessoas, quando estão com problemas espirituais, começam a inventar coisas. Nunca mantive ninguém obrigado aqui. Todo mundo vai e volta a hora que quiser”, defendeu-se.
A mãe da jovem resgatada pela polícia aceitou conceder uma entrevista ao Metrópoles. Ela é seguidora de Ana Vindoura há 13 anos e acredita que a Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia foi vítima de uma armação.
“Minha filha é um amor de pessoa, mas se aproveitaram dela num momento de fraqueza espiritual para fazer essas denúncias absurdas”, conta Joana Mercês, sem explicar, no entanto, quem e quais razões levariam alguém a querer dar fim à doutrinação.
- *Nome fictício a pedido da entrevistada