Indígenas trabalham sob vigilância armada no Pará após ‘conciliação’ autorizada por STF
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Escoltados por homens armados, dezenas de parakanãs, povo de recente contato do Médio Xingu, trabalharam por um mês abrindo a golpes de facão uma picada na floresta. O objetivo dos fazendeiros que financiaram a iniciativa era traçar um limite e se apossar de 392 mil hectares da terra indígena Apyterewa, homologada pela Presidência da República em 2007.
O pretexto foi uma decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, que, em 2020, autorizou uma “conciliação” entre indígenas e invasores para reduzir Apyterewa.
Em dezembro, o colunista do UOL Rubens Valente revelou que um grupo de caciques havia concordado em reduzir a área indígena em 50,7% dos 773 mil hectares demarcados há 15 anos. O acordo provocou contestação interna, principalmente das mulheres.
O picadão seria a “nova divisa” com os não indígenas. Para convencer os parakanãs, um grupo de fazendeiros, entre os quais Adelson Costa, fez uma reunião com lideranças na aldeia Raio de Sol, à beira do Xingu.
Ali os invasores argumentaram que a iniciativa seria benéfica aos indígenas e prometeram pagar diárias de R$ 250, segundo relatos à Folha sob a condição do anonimato.
Cerca de 150 parakanãs trabalharam no picadão. Para chegar até o local, viajaram de canoa até a casa de uma ribeirinha. De lá, foram levados de camionete até a sede da fazenda de Costa, presidente de uma das associações dos invasores. Ali foram organizados em grupos de trabalho.
Da fazenda, foram transportados até o local de abertura do picadão, em mata fechada. Em plena epidemia de Covid-19, eles trabalharam ao lado de posseiros. Os fazendeiros têm estimulado a chegada de centenas de novos invasores como forma de pressionar o governo a reduzir a terra indígena para acomodá-los.
De acordo com os indígenas, guaxebas (jagunços) faziam a “segurança” no local, portando armas longas. A comida, insuficiente, não incluía carne, obrigando os parakanãs a caçar. No acampamento, também foi servida cachaça. Além disso, o pagamento da diária caiu para R$ 70.
Muitos parakanãs começaram a desistir. Para voltar, no entanto, não havia mais transporte, e eles tiveram de percorrer os cerca de 70 km a pé até a beira do Xingu. Uma viagem que durou pouco mais de dois dias.
Em 14 de dezembro, duas semanas após a revelação do acordo de redução, Gilmar Mendes encerrou “as tentativas de conciliação”. Com isso, a abertura da picada foi suspensa pelos fazendeiros, e o restante dos parakanãs também teve de voltar andando.
A conciliação autorizada pelo ministro do STF vinha sendo duramente criticada por organizações indígenas, como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). O temor é que Apyterewa possa abrir um grave precedente ao reduzir terras já demarcadas para acomodar invasores ilegais, que se sentem respaldados pelo governo Bolsonaro.
Além disso, críticos apontam a inconstitucionalidade de uma negociação para a redução de Apyterewa, já que se trata de terras públicas da União, das quais os indígenas têm direito apenas ao usufruto.
Em entrevista, Mamá Parakanã, um dos caciques que assinaram o acordo, afirma que concordou com o picadão como forma de limitar a invasão. De agosto de 2020 a julho de 2021, Apyterewa foi a terra indígena mais desmatada do Brasil, com uma perda de 68 km2, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais).
“Com tanta pressão que a gente teve, a gente se sente sozinho, e o governo não está nem aí para o povo parakanã. A gente está aqui sem apoio da Justiça, sem apoio da Funai, do Ministério Público Federal”, disse o cacique em entrevista na aldeia Xingu.
“Tem muita gente que está aí criticando o povo parakanã, ‘o povo parakanã vendeu sua terra’. A gente não vendeu a terra, a gente fez só o picadão para ver se não invadem mais a terra para não chegar às nossas aldeias.”
Além dos invasores em busca de terra, os parakanãs sofrem com o garimpo ilegal. Contaminado pela extração de ouro, o igarapé São Sebastião deixou de ser usado pela aldeia Paredão, que agora precisa buscar água em uma fazenda vizinha, fora da área indígena.
Ameaças e pressão vindas dos invasores são recorrentes. Um dos incidentes mais graves ocorreu em 2017, quando Adelson Costa, acompanhado de homens armados, destruiu uma aldeia em construção, em área de interesse dos invasores. A Polícia Federal abriu inquérito para apurar o caso.
Procurado, Costa não quis dar entrevista. Via WhatsApp, disse apenas: “Conversa com as lideranças indígenas. Foram eles que fizeram o picadão.”
A reportagem apurou que um parecer jurídico da Funai avaliou que o picadão é uma iniciativa ilegal. O órgão indigenista não respondeu aos pedidos de esclarecimento solicitados via assessoria de imprensa.
O desmatamento já destruiu parte dos castanhais dos parakanãs. Além disso, há regiões que ficaram próximas demais dos invasores. Mesmo assim, a extração se tornou uma das principais atividades de Apyterewa, graças a um projeto por meio do qual a produção é vendida à empresa Wickbold.
Neste ano, serão comercializadas 700 caixas, o dobro do que foi entregue em 2021. A coleta recorde é motivo de orgulho dos parakanãs.
“Para a comunidade, é importante a floresta em pé para termos essa colheita”, afirma Iori Parakanã, gestor da produção de castanha das aldeias.
Mulheres
Uma novidade recente entre os parakanãs é que as decisões dos caciques, todos homens, passaram a ser publicamente questionadas pelas mulheres.
Durante uma reunião de lideranças, em dezembro, coube à jovem Mononara Parakanã, 21, fazer as críticas mais duras ao acordo feito com os fazendeiros.
“Falei para eles que a gente, de maneira nenhuma, quer fazer esse acordo com os invasores”, disse a jovem, que cursa a oitava série. “Falei para eles também que só os homens assinaram o documento: ‘Vocês falaram com as mulheres, com as crianças, com os velhos antes de fazer isso?'”, recorda.
“Nenhuma mulher quer que esses invasores façam esse picadão. A gente não concorda com isso, com essa decisão que os homens fizeram. Queremos que os invasores saiam da nossa terra.
“Linha do tempo
– 1983/4. Invasão de madeireiros e de garimpeiros à região dos parakanãs precipita o contato oficial com os brancos, no Médio Xingu.
– 1992. Governo Collor reconhece a área como território parakanã; em reação, madeireiras de mogno incentivam a invasão de posseiros para tentar impedir demarcação.
– 2007. Com o nome de Apyterewa, terra indígena Parakanã é homologada pelo presidente Lula (PT) como uma das condicionantes para construir a usina hidrelétrica de Belo Monte, mas não faz a desintrusão de não indígenas.
– 2016. Belo Monte é inaugurada sem o cumprimento da desintrusão de Apyterewa.
– 2017. Pressionado por políticos do Pará, governo Michel Temer (MDB) cancela uma operação para desintrusão. Invasão de não indígenas acelera a ponto de criar um lugarejo, Vila Renascer.
– 2019. Sob a influência da eleição de Jair Bolsonaro (PL), que tem incentivado invasões a terras indígenas, desmatamento bate recorde desde a demarcação.
– Mai.2020. Ministro do STF Gilmar Mendes autoriza “conciliação” entre indígenas e a prefeitura de São Félix do Xingu (PA) para negociar redução da terra indígena.
– Nov.2021. Pressionados por fazendeiros e sem apoio do governo federal contra invasões, grupo de caciques parakanãs aceita acordo para reduzir 392 mil hectares (50,7%) do território.
– Dez.2021. Gilmar Mendes volta atrás e encerra conciliação judicial.
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