Justiça do Rio só gerou cinco condenações por exercício ilegal da medicina em três anos
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Justiça do Rio só gerou cinco condenações por exercício ilegal da medicina em três anos
A sensação de impunidade que leva um falso profissional a exibir-se sem pudor como tal tem respaldo em números.
Na foto do aplicativo de mensagens, máscara cirúrgica e consultório. Menos de três meses antes, porém, Iago Ricardo Pontes Vieira, de 26 anos, havia sido preso em flagrante em Brás de Pina, Zona Norte do Rio, acusado de exercer ilegalmente a profissão de dentista. Mesmo sem formação, ele foi flagrado por agentes da Delegacia do Consumidor (Decon) fazendo o terceiro atendimento em um mesmo cliente, pelo qual foram pagos R$ 300. Procurado pelo EXTRA para expor sua versão dos fatos, Iago excluiu a foto mencionada menos de dez minutos após a mensagem ser enviada. Não houve resposta.
A sensação de impunidade que leva um falso profissional a exibir-se sem pudor como tal tem respaldo em números. Entre 2015 e 2017, segundo dados obtidos pelo EXTRA via Lei de Acesso à Informação, o Tribunal de Justiça do Rio condenou somente cinco réus em primeira instância por exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, além de uma absolvição. Para fins de comparação, o número é idêntico ao total de indiciamentos (cinco) pelo mesmo crime que uma única delegacia, a Decon, registrou nos últimos quatro meses, desde que atual delegada titular, Daniela Terra, assumiu a especializada, em abril.
No local onde atendia, Iago mantinha carteira funcional e carimbo em nome de outras pessoas, como consta no registro de ocorrência — por isso, ele também foi enquadrado no crime de estelionato. Segundo o depoimento da secretária do espaço, o falso profissional “sempre se apresentou como cirurgião dentista” e recebia comissão em dinheiro, no valor de “30% de cada consulta ou procedimento realizado”.
Ricardo de Oliveira Ursine Silva, de 34 anos, também não se furtava de postar fotos de jaleco em redes sociais. Pior: ele dava expediente em um posto da saúde municipal de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Quando recebeu voz de prisão de um vereador e foi encaminhado à Decon, em maio, a prefeitura da cidade alegou desconhecer que ele trabalhasse como médico, profissão que, de fato, ele não está apto a exercer. Ricardo também portava receituários de terceiros — assim como no caso de Iago, xarás com sobrenomes diferentes
O EXTRA também tentou contato com Ricardo Ursine Silva. Inicialmente, uma mulher identificada apenas como Naiane atendeu o telefone, afirmou que “o ideal seria a não publicação da reportagem” e solicitou que a ligação fosse refeita dali a pouco. Nos telefonemas seguintes, porém, ninguém atendeu em nenhum dos dois números creditados a Ricardo. Os contatos via aplicativo de mensagem também não tiveram retorno.
Filha ouviu que a mãe ‘não morreria’
Para cuidar de sua saúde e de quatro familiares, uma mulher de 43 anos pagava uma mensalidade de R$ 100 a uma clínica popular em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Em uma consulta, ouviu de um dos médicos que “sua mãe não morreria do coração”. Menos de uma semana depois, a idosa veio a óbito “por causa indeterminada”.
Desconfiada do atendimento, a mulher procurou a polícia depois de saber que o profissional em questão, Roberto Carlos Rivero Salazar, de 44 anos, havia sido detido pela Decon. Para ela, porém, tratava-se de Juan Ricardo Aspazu, nome com o qual o boliviano se apresentava.
O indiciamento por exercício ilegal da profissão deste ano é o segundo contra Roberto. Ele já havia respondido pelo mesmo crime em 2012, após ser flagrado atendendo em uma clínica de Campinho, na Zona Norte do Rio.
Procurado pelo EXTRA, Roberto contou ser formado em medicina na Bolívia. Casado com uma brasileira e com visto permanente, ele alega enfrentar resistência para revalidar o seu diploma em território nacional.
— Não é que justifique. Existe um crime, e ele vai responder. Mas ele precisa exercer a profissão, e as universidades federais se recusam a revalidar. É uma perseguição velada — afirmou a advogada Fabiana Raslan, que defende o boliviano na tentativa de regularizar sua situação.
Segundo a delegada Daniela Terra, da Decon, situações como a da clínica de Nova Iguaçu não são raras. Muitas vezes localizados em áreas de risco ou de acesso mais difícil, esses espaços costumam enfrentar dificuldades para atrair médicos, gerando contratações ilegais.
— É comum haver esses falsos profissionais dentro de comunidades, por exemplo — diz.
Além dos quatro indiciamentos recentes feitos pela Decon, a unidade enquadrou ainda um enfermeiro do trabalho acusado de vender atestados médicos assinados por ele. O suspeito foi detido em 16 de abril deste ano. Três meses depois, o processo na Justiça foi suspenso por sugestão do Ministério Público, com a concordância do réu. A tramitação só será retomada se o enfermeiro descumprir algumas determinações — como a de “não cometer nova infração penal” — ao longo de dois anos.
Pena é vista como leve
O debate sobre falsos médicos reacendeu essa semana com, entre outros casos, a ação da Decon na clínica irregular onde atuava Patricia Sílvia dos Santos, massoterapeuta que, segundo a polícia, apresentava-se a interessadas em fazer preenchimentos nos glúteos como Paty Bumbum. No local, foram apreendidos seringas, agulhas, anestésicos e até silicone industrial — material cujo uso para fins estéticos é proibido por lei.
Assim como nas outras ocorrências citadas nesta reportagem, Patricia foi indiciada por exercício ilegal da medicina. Porém, como o crime é considerado de menor potencial ofensivo e tem pena máxima de até dois anos de reclusão, ela foi liberada logo após ser conduzida à delegacia, onde preferiu permanecer calada.
Por nota, o Conselho Regional de Odontologia do Rio (CRO-RJ), responsável pela denúncia que levou à prisão de Iago, pediu “mudanças nessa lei” e citou o caso de “um paciente de 11 anos, hemofílico, que veio a óbito por fazer uma extração dentária irregular”. “Consideramos totalmente inadequada as penas que são dadas”, reforçou a entidade.
Já Nelson Nahon, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), pontua que a revisão na legislação seria “mais uma maneira de ajudar”. Para ele, contudo, o melhor remédio é a conscientização:
— A curto prazo, essa é a única solução possível, além de ações rápidas e eficientes da polícia. Mudar leis leva tempo, depende do Congresso… E a população não pode esperar.
Tanto o Conselho Federal de Odontologia quanto o CRO-RJ disponibilizam, em seus sites, consulta nominal por profissionais. A busca também pode ser feita pelo número de inscrição que consta em receituários, carimbos e afins. O CRO-RJ tem ainda 16 delegacias regionais espalhadas por todo o estado, inclusive no interior. Nelas também se pode fazer denúncias ou tirar dúvidas presencialmente. A lista de locais está no site da entidade.
O Cremerj também tem, em sua página, uma ferramenta que permite ao internauta procurar qualquer médico pelo nome. Em alguns casos, as informações incluem também uma foto do profissional, facilitando a identificação. As duas entidades de classe informam que reportam todas as irregularidades que são constatadas ou denunciadas às autoridades. O CRO-RJ conta com uma parceria constante com a Decon, enquanto o Cremerj tem por prática comunicar diretamente à Polícia Federal.