Metrô SP: empreiteira pediu dispensa de estudos em área de quilombo
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Documentos indicam que obras da Linha Laranja – 6 ignoraram história
BRASIL – Metrô de São Paulo – Linha Laranja
Foto: Rovena Rosa
As pesquisas históricas e arqueológicas para obter as licenças necessárias para o início das obras da Linha Laranja – 6 do metrô de São Paulo ignoraram a história do bairro do Bixiga, na região central paulistana, ligada a uma comunidade quilombola. Ao contrário da maior parte das áreas afetadas pelas obras, não foram feitos estudos arqueológicos prévios no local, atendendo a um pedido da concessionária.
Estudo de impacto ambiental, realizado em 2014, chegou a apontar a sede da escola de samba Vai-Vai como um imóvel de possível interesse histórico e cultural. No entanto, os trabalhos de investigação arqueológica feitos posteriormente desconsideraram a região, ignorando os registros de que ali havia o Quilombo Saracura e que a agremiação foi fundada justamente pelos descendentes dessa comunidade, que reunia pessoas negras que fugiam do regime escravista.
A reportagem da Agência Brasil analisou a documentação do licenciamento ambiental pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a partir do Sistema Eletrônico de Informações (SEI).
Territórios negros ignorados
Os pontos que foram abarcados pelos estudos vão do início da linha, no Morro Grande, zona norte paulistana, até Higienópolis, na parte central da cidade. Ficaram de fora as estruturas na região da Bela Vista, onde fica o Bixiga, e a Liberdade, outro bairro onde recentemente foi redescoberto o Cemitério dos Aflitos. Nesse local, entre 1775 a 1858, eram enterradas pessoas escravizadas e pobres, sendo também uma área importante para a história das populações afrodescendentes na capital paulista.
A respeito do bairro do Bixiga, nos estudos prévios apresentados pela A Lasca, há um destaque para a chegada dos imigrantes italianos a partir de 1880 e de “trabalhadores pobres”. Não há qualquer menção ao Quilombo Saracura, apesar de recortes de jornais do início do século 20 chamarem a região de “pequena África”. São lembrados os times de várzea e os cordões carnavalescos, como o Cai-Cai que deu origem à escola de samba Vai-Vai, entre 1920 e 1930.
Apagamento
Na avaliação da coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum, Gisele Brito, houve uma tentativa de apagamento da história negra do Bixiga.
“Se sabia que aquele é um território negro. O Bixiga é um território negro. E aquele território específico onde estava sendo construída a estação era a Vai-Vai, que era um território negro vivo”, diz.
Para além das evidências históricas de que havia um quilombo na região, Gisele destaca que a escola de samba era um elemento atual que fazia conexão direta com esse histórico.
“A Vai-Vai era uma evidência que foi removida daquele território. Já havia várias referências historiográficas que havia ali um quilombo”, enfatiza.
O local onde estava localizada a escola de samba está ligado, segundo a especialista, a manifestações religiosas afrobrasileiras. “A gente sabe que o rio atrai vários rituais religiosos”, acrescenta sobre o Córrego Saracura, que atualmente está canalizado.
Moradores mais antigos lembram de uma relação próxima com o rio. “Eu tomava banho naquelas nascentes às 17h. Toda a negradinha ficava ali. E sempre tinha uma mãe, com sabão de cinzas para dar banho em todo mundo. Mas isso para provar que nós estamos há séculos no Bixiga”, disse um dos membros da diretoria da Vai-Vai, Fernando Penteado, ao participar de um evento na Câmara Municipal na última terça-feira (21).
Liberação sem estudos
O processo de licenciamento das obras no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) mostra que a A Lasca, empresa contratada pela concessionária responsável pelas obras para fazer os estudos arqueológicos, fez prospecções (coleta de materiais em campo) em 11 pontos do traçado da linha. Estão incluídos nessas áreas os locais onde devem ser construídas sete das quinze estações. As estruturas de ventilação e saídas de emergência também estão contempladas.
Em fevereiro de 2020, a superintendência do Iphan em São Paulo emitiu um parecer em que concedia liberação, do ponto de vista arqueológico, nas áreas onde haviam sido feitas as prospecções. Em março daquele ano, a concessionária Move São Paulo enviou uma carta pedindo que houvesse liberação de todas as áreas que seriam afetadas pelo empreendimento, mesmo aquelas em que não houve pesquisa prévia.
O documento, assinado pelo então presidente do consórcio, Raul Ribeiro Pereira Neto, argumentava que um ofício do Iphan de São Paulo, de abril de 2017, havia dispensado a empresa de continuar a fazer pesquisas arqueológicas nas áreas afetadas pelas obras da nova linha do metrô. Segundo o ofício, eram regiões “já impactadas pelo processo de urbanização”.
O ofício mencionado – 629 de 2017 – não consta no sistema digital que reúne a documentação relacionada ao licenciamento, conforme apontado pelo então superintendente substituto do Iphan, Ronaldo Ruiz ao responder o pedido de liberação da concessionária. Nesse documento, assinado em abril de 2020, o órgão dispensou a empresa de continuar os estudos arqueológicos nas áreas onde serão construídas as estações e outras estruturas, com base no ofício citado.
Mudança de concessionária
Em julho de 2020, a Move São Paulo transferiu o contrato para construção da Linha Laranja para a concessionária Linha Uni, que tem o grupo espanhol Acciona como maior acionista, além do banco de investimentos francês Société Générale e o fundo francês Stoa.
O rompimento do contrato com a Move aconteceu após a concessionária atrasar o cronograma de obras. A concessionária enfrentou dificuldades em captar recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) devido às condenações sofridas pelo grupo controlador da empresa, Odebrecht, em processos por corrupção a partir da Operação Lava Jato.
Em abril de 2022, após a demolição da sede da Vai-Vai e com as obras da futura estação de metrô em andamento, a Acciona informou ter encontrado no local um sítio arqueológico. Foram iniciadas então, escavações para buscar possíveis objetos de interesse histórico e cultural no local.
O relatório da empresa especializada em arqueologia não diz, entretanto, que os cordões e a escola foram fundados pela população negra que vivia na região.
O Iphan recomendou a paralisação das escavações após um alagamento afetar o canteiro de obras no início de fevereiro. Foram resgatados pedaços de louças, fragmentos de vidro, conchas e ossos de animais. Segundo o órgão, os materiais encontrados até o momento são de meados do século 20. Membros do Movimento Saracura Vai-Vai, que luta pela preservação do sítio arqueológico afirmam que alguns dos itens encontrados podem ser indícios de manifestações religiosas.
Em ofício enviado nessa quarta-feira (22) à empresa responsável pelos trabalhos arqueológicos, o Iphan diz que “as obras não relacionadas à segurança e instabilidade do terreno e do sítio” não devem ser retomadas no momento. Foram instaladas estruturas para conter não só a chuva, mas também poços e bombeamento para escoar as águas que afloram do subsolo. A previsão é que os trabalhos de resgate sejam retomados no próximo mês, com o fim do período chuvoso na cidade.
Outro lado
A Lasca afirma que tratativas posteriores ao licenciamento permitiram a preservação do sítio arqueológico. Segundo o relatório indicado pela empresa, foi feita uma primeira prospecção em agosto de 2021 e outra em março de 2022. “Essa área, assim como as demais que ainda não haviam sido, foi prospectada, monitorada, o sítio arqueológico foi encontrado e registrado e estamos na fase de escavação arqueológica”, destacou por e-mail a diretora técnica da empresa, Lúcia Juliani.
A Vai-Vai deixou a sede que ocupou por mais de 50 anos em setembro de 2021 e o imóvel foi demolido em outubro daquele ano.
No relatório apresentado pela A Lasca em abril de 2022, é feita uma contextualização da trajetória das populações negras na região do Bixiga, trazendo menções ao quilombo e conectando com a história do samba paulistano.
A Novonor, grupo que sucedeu a Odebrecht, não vai se manifestar por entender que o contrato e as responsabilidades associadas foram repassados à nova concessionária.
A reportagem também pediu esclarecimentos sobre o processo de licenciamento à concessionária Linha Uni e ao Iphan e aguarda retorno.
Edição: Heloisa Cristaldo
| IDNews® | Beto Fortunato | Via Agência Brasil |