‘Não é não! – mulheres tomam a frente no Carnaval’Não é não! – mulheres tomam a frente no Carnaval
Warning: Trying to access array offset on value of type bool in /usr/storage/domains/i/idnews.com.br/www/wp-content/plugins/wp-social-sharing/includes/class-public.php on line 81
‘Não é não! – mulheres tomam a frente no Carnaval
Mulheres falam sobre o assédio no carnaval
13FEV2018| 12:44 - Assédio - Foto: © Reprodução / Instagram
O Carnaval diz muito sobre o Brasil e as mulheres sabem disso mais do que ninguém. Para ouvi-las, a Sputnik Brasil fez uma reportagem especial conversando com mulheres que protagonizam o Carnaval das escolas de samba no Rio de Janeiro, e elas revelaram uma outra face do maior show da Terra.
Ela conta que ensaia até 3 vezes por semana para se preparar para os desfiles, fora eventos e apresentações extras. Apesar do esforço e da determinação, Viviane conta que decidir ser passista é enfrentar preconceitos e situações de machismo.
“A imagem da mulher no Carnaval é bem complicada. Não só dentro do Carnaval, mas para quem está de fora também. A gente é visto como um objeto mesmo. Por termos a questão da sensualidade, a questão do corpo, o que é inerente à passista, faz parte, não é uma coisa ruim. Só que é aquele momento ali dentro da quadra, a gente está representando um pavilhão. E as pessoas não conseguem separar isso”, afirmou.
A passista lembra que essa imagem criada sobre as mulheres traz muitas confusões, dentro e fora das escolas. Viviane conta que já recebeu propostas para se prostituir, tanto de aliciadores quanto propostas pessoais. Além disso, já foi perseguida por um homem em um carro que queria força-la a ir junto com ele. Na ocasião, ela teve que correr para se proteger em um ponto de ônibus, onde encontrou mais pessoas e afugentou a assediador.
Quase todo o Brasil culmina no Carnaval. O sambódromo que se enche de sobrevivência, cobre-se de sorrisos no ritmo das contradições do país.
De repente, papeis se invertem. Mulheres nuas surgem em horário nobre na televisão, negros e pobres viram protagonistas em uma ópera luxuosa a céu aberto, as ruas se preenchem de pessoas prontas para a alegria, e o trabalho alienante parece cessar.
Mas o país da crise permanente, violento dos pés à cabeça, não abandona a História pela fantasia quando decide sambar.
O samba é resistência, sabe-se bem. Assim concordam intelectuais e sambistas, que sabem que há uma civilização imersa na imagem criada pelos jornais. E as imagens do estereótipo, do sexo acessível e da vulgaridade são atribuídas primeiro às mulheres. O que aumenta ainda mais quando são negras. Para elas, o Brasil é um país especialmente violento.
Rayane da Silva Ferreira, jovem de 22 anos, passista da Acadêmicos do Salgueiro, confirma a visão de Viviane. A bailarina profissional conta que participa de diversos eventos dentro e fora da escola, com músicos de Funk e Hip Hop, além de já ter sido passista também em outra escola de samba, a Acadêmicos da Grande Rio.
Assim como Viviane, ela acredita que a imagem transmitida da passista costuma ser problemática. “A imagem da passista é hiperssexualizada”, conta, e acrescenta que é assediada com frequência: “Assédio tem a todo o momento em qualquer lugar”.
Fernanda Florentino, de 20 anos, desfila no Salgueiro, na Império da Tijuca, Paraíso do Tuiuti e na Lins Imperial, em que é rainha de bateria.
“Eu sofro assédio todo dia, fora o Carnaval. No Carnaval eu acho que eles até respeitam mais. […] Acho que tem mais respeito no Carnaval do que fora”, conta.
Já Rayane, lembra que seu ex-marido não aceitava o fato de ela ser passista, mesmo sendo algo que ela ama e que faz desde pequena. Em um certo momento, Rayane acabou com o casamento, pois não aguentava mais a pressão para que parasse de dançar.
Quem também sofre pressão dentro da família é Ariane Assis de Santana Azerevo, de 21 anos, passista da Unidos de Vila Isabel. A professora e estudante de educação física participa do Carnaval desde os 7 anos. Apesar de ter mãe passista, avô diretor e pai mestre e sala de diversas escolas do Rio de Janeiro, ela afirma que seu avô e sua mãe não aceitam que ela seja passista. Assim como seu ex-namorado.
“Eu terminei por causa disso. Ele mandou eu escolher entre o Carnaval ou ele. Como o Carnaval é minha vida, eu escolhi o Carnaval”, conta.
Ela acredita que o fato de ser negra também influencia a forma como é vista. “É como falam: ‘ah, você é carioca, você é negra, então você sabe sambar’. Não! Eu posso não saber sambar. Por que eu sou obrigada a saber sambar? Porque eu sou negra? Porque eu sou carioca? Não!”, disse.
“A gente se sente até mal por ser mulher”
A jovem passista Ariane Assis, assim como Rayane e Viviane, aponta algo muito comum no cotidiano da mulher brasileira: o assédio. “Eles acham que só porque você está sambando, têm o direito de passar a mão e falar uma gracinha e não é assim. A gente está ali porque a gente gosta”, afirma. “O samba é uma dança. A gente está ali para deixar as pessoas felizes, para curtir, e não para ouvir essas gracinhas que a gente ouve muito, que é muito feio mesmo. A gente se sente até mal por ser mulher”, desabafa.
Este ano, campanhas contra o assédio às mulheres no Carnaval ganharam ainda mais força. O grito feminino que a custo de gerações de mulheres militantes e organizadas, já não pode ser ignorado.
No Rio de Janeiro, o governo estadual criou campanhas espalhando cartazes e anúncios pelas ruas e pelo transporte público. Nas redes sociais, as mulheres se manifestam através de hashtags, vídeos e imagens. A frase mais repetida “Não é Não!”, um lembrete aos assediadores, mostra que ainda há muito a ser feito para que o respeito seja pauta.
A violência contra a mulher no Brasil apresenta dados assustadores. Números divulgados pelo Fórum de Segurança Pública, em 2017, apontam que o país registrou pelo menos 49,497 mil casos de estupros, um crescimento de 3,5% em relação ao ano anterior. No entanto, diversos fatores impedem que mulheres se sintam à vontade para denunciar esse tipo de violência.
Segundo os cálculos do próprio governo, fatores como o medo do julgamento alheio, fruto do machismo, e a falta de infraestrutura para o atendimento à mulher de forma adequada em delegacias especializadas, geram um fenômeno de subnotificação. Para o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), apenas 10% dos casos de estupro são registrados. Ou seja, é possível que o número de estupros ocorridos seja muito maior. Somado a isso os 61,283 mil assassinatos registrados em 2017 no Brasil, resultam em um país de extrema violência. A taxa de homicídios contra a mulher também é alta. Hoje, o Brasil é o 5º país com o maior número de assassinatos de mulheres, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na tela da TV, no meio desse povo
Rosane Borges é doutora em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em mídia e comunicação, Rosane dá aula em algumas das principais universidades de São Paulo. Ela afirma que o Carnaval, mesmo em sua forma contemporânea, representa uma forma de expurgar pecados. E que, de fato, o corpo da mulher é representado de uma forma sexualizada pela mídia brasileira.
“O corpo, não só da mulher negra, mas também da mulher branca, está exposto no carnaval como um corpo belo que se expõe, onde não se tem fronteiras rígidas de censura”, aponta.
A doutora em Jornalismo afirma que há diferenças que surgem quando se observam mulheres negras e brancas. Um problema novo surge para além da sexualização, pois apesar de a sociedade criar barreiras para todas as mulheres, as negras têm ainda menos oportunidades em todos os campos da vida. Dados de 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a mulher ganha em média 23,6% a menos e trabalham 7,5 horas/semana a mais que homens no Brasil.
“É que essa visibilidade, digamos, corpórea […], e, veja, é o corpo normalmente da mulata, não é nem o corpo da mulher negra de pele escura, mas esse corpo da chamada mulata, é invisibilizado no cotidiano, no dia-a-dia. O que não acontece necessariamente com a mulher não-negra, com a mulher branca”.
Rosane aponta que essa clivagem entre a mulher branca e negra acontece mesmo sabendo que a sociedade brasileira seja “sexista, machista e patriarcal”, em que as mulheres em geral ainda sofrem ganhando menos e tendo menor participação nas instâncias de poder e na esfera pública. Para ela, a mulher branca tem o corpo menos restrito à sexualidade e ao trabalho subalternizado.
Ela remete a uma famosa frase registrada pelo sociólogo Gilberto Freyre, “branca para casar, preta para trabalhar, e a mulata para fornicar”, que para Rosane sintetiza a tensão exposta no Carnaval. Freyre é criticado hoje em dia por ter criado as bases do que viria a ser conhecida como democracia racial, uma representação de um Brasil que supostamente teria resolvido as tensões raciais.
A professora lembra que a representação midiática da mulher influencia diretamente a forma como as pessoas enxergam a si mesmas e às outras, criando um círculo vicioso, pois a matéria prima da mídia vem também da sociedade.
“Ela influencia porque na verdade ela se alimenta desse imaginário, dessas matrizes, que eu costumo dizer, que são matrizes imemoriais que informam muito o que é mulher negra, que informam muito o que é uma mulher branca […]. Eu costumo dizer que é uma via de mão dupla. A mídia, sendo parte da sociedade, ela acaba refletindo, reflete e retrata esses signos, esses imaginários, essa simbologia”, conclui.
Quem concorda com isso é Fernanda Bueno, uma jovem mulher negra de 23 anos que já dançou profissionalmente, e hoje é Relações Públicas e Quadrinista. Ela acredita que atrair turistas utilizando os corpos das mulheres é uma ideia primitiva, e recorda que sua vida foi marcada pela forma como a mulher negra é retratada pela mídia, desde referências de identidade a apelidos recebidos.
Quando entrou na faculdade, uma das poucas negras da turma, ela foi apelidada de Globeleza, a passista negra utilizada há décadas pela maior emissora do país para peças publicitárias e esquetes televisivos, anunciando a chegada do Carnaval. Para Fernanda, a representação midiática afetou a própria vida.
“Antes de ser a Globeleza, eu era a Helena. Quando eu tinha 14-15 anos estava no ensino médio, e a Taís Araújo fez a primeira protagonista negra [em telenovelas]. […] Eu não entendia que essa associação direta tinha um impacto na leitura das pessoas em relação ao meu potencial como ser humano […] Eu não percebia o quanto isso me violentava”.
Fernanda lembra que ao mudar suas referências e começar a estudar o assunto, sua percepção sobre si mesma também se transformou. Ela passou a querer ser reconhecida, primeiro, como profissional. Ao concluir sua pesquisa no final do curso de Relações Públicas, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela analisou vinhetas de novelas da TV Globo, e descobriu que quase não havia mulheres negras nas aberturas das novelas. A representação midiática continuava sendo principalmente vinculada ao Carnaval.
Escola de samba é trabalho, trabalho e mais trabalho
Uma das funções mais nobres entre as dezenas em uma escola de samba é a de passista. Essa ala é responsável por contagiar e seduzir as pessoas em volta, o que faz do samba no pé uma exigência básica.
Apesar de os homens também terem parte, é principalmente das mulheres a responsabilidade e a imagem dessa posição. A passista usa fantasias curtas e dança com energia. São geralmente moradoras dos bairros sede das escolas, e participam o ano inteiro de ensaios técnicos, reuniões e eventos relacionados ao Carnaval.
No entanto, o esforço e a disciplina que a arte exige não são a primeira coisa a ser lembrada pelas pessoas. Em primeiro lugar, lembram de seus corpos. Em uma sociedade como a brasileira, em que a violência contra a mulher é alta, essa imagem pode se transformar em assédio.
“Eu moro a mais de 60 km do Centro do Rio. Eu moro bem longe. […] Eu levo 2 horas para chegar até a quadra do Salgueiro. Aí você imagina, sábado, o horário de apresentação começa às 10h. Lá a apresentação acaba às 2h. Eu venho dessa distância toda apenas para me apresentar, sem ganhar nada. Para apenas poder ter a honra de defender o meu pavilhão”, conta Rayane Guedes, moradora do bairro.
Rayane, que também é de uma família com sambistas, acredita que o trabalho da mulher no Carnaval é desvalorizado.
“A valorização não é a imagem que as pessoas passam, entendeu? ‘Você é passista? Nossa, que legal!’, ‘a nossa escola tem as melhores passistas!’, mas não valorizam como falam, entendeu?! […] Acho que deveria haver mais valorização, uma conexão maior, ver o esforço de cada um, de cada mulher”, afirmou.
Ana Cristina Dantas, funcionária pública de 41 anos, há 18 anos desfila em escolas de samba. Mãe de 1 filho de 19 anos, ela acredita que a presença feminina é simplesmente indispensável para o Carnaval. “Acho que sem mulher não tem Carnaval, não tem espetáculo. Acho que a gente é uma parte muito importante do desfile”, conta.
Já Ariane, afirma que há um estereótipo retratado pela mídia. “Como falam, é a ‘mulata show’. Já botam uma pessoa negra alta, grande, aí bota roupa pequena e biquíni. Não! A gente usa vestido, maiô, a gente usa tudo!”, aponta Ariane.
Rayane, por sua vez, lembra que as mulheres são maioria entre as passistas, e para ela falta uma valorização desse papel que venha a condizer com a importância que lhes é dada.
No entanto, ela diz que se sente segura dentro da escola de samba, e que há um apoio de vários setores da organização para protegê-la de qualquer tipo de assédio. O que não impede que fora da escola isso continue.
“As mulheres são 80% de uma escola de samba”
Kissela Silva Vidal, de 19 anos, mora em São Gonçalo e desfila como passista pela Unidos do Viradouro. Desde criança na escola, ela afirma que nunca sofreu assédio ou presenciou algo do tipo em sua escola. Para ela, muito se deve ao fato de que a escola está atenta à questão, com políticas voltadas às passistas.
Algo muito parecido acontece na maioria das agremiações. É o caso da Unidos de Vila Isabel, cujas passistas, como Ariane, contam com o apoio da diretoria para orientação e contenção de qualquer tipo de assédio.
Euza Cristina Borges dos Santos, de 47 anos, é diretora na Vila Isabel, e desenvolve atividades sociais na ONG Dom Pixote, no Morro dos Macacos, dentro de Vila Isabel.
“As mulheres são 80% de uma escola de samba, pelo menos aqui na Vila nós somos 60% a 70% feminina”. A presença feminina tem progredido, segundo Euza, inclusive em cargos de chefia. No entanto, ainda há poucas mulheres tanto nas presidências quanto nas baterias das escolas.
“É machismo, puro. Nós [as mulheres] entramos na bateria há coisa de 20 anos. Você tem a mulher ritmista tocando. Então acredito que daqui a uns 10 anos você tenha mulheres chefiando bateria”, afirmou.
“A Vila tem uma característica, nós estamos com passistas muito jovens, então há uma grande proteção. As chefes das passistas são 3 mulheres. Então tem essa proteção, esse cuidado, a gente leva como família, são mãezonas delas”, contou Euza. Ela também afirmou que a escola, devido à idade das passistas, evita a exposição de seus corpos em excesso.
Para ela, as escolas têm mudado bastante em relação ao uso do corpo devido à prevalência da visão de muitos carnavalescos, que tem focado no espetáculo visual da festa. Para tal, eles aumentam as fantasias e os carros, o que é, inclusive, alvo de críticas por outros membros.
A competitividade dentro das escolas também é um fator a ser pontuado. As passistas são observadas e chamadas para eventos, o que lhes garante renda extra. Além disso, muitas sonham em se tornar rainhas e destaques da escola, como lembra Viviane, da Porto da Pedra. “É um lugar que dá muita visibilidade, tem muitas pessoas que procuram o samba, não só mulheres, como homens também, que vão procurando status, um algo a mais”.
Explode coração
Assim como cresce nas ruas o clamor pelos direitos das mulheres, as sambistas também se empenham para combater por dentro os estereótipos e as estruturas antigas, denunciando os problemas que acompanham a festa símbolo do Brasil e seguirem com sua paixão. O amor pelo que fazem as escolas de samba, pelas cores, pela dança e por suas comunidades também faz parte desse desejo.
Para Viviane, o samba é poderoso a ponto de funcionar como uma válvula de escape, uma forma de esquecer os problemas. “O que eu sei é que quando eu chego na quadra, eu ouço a bateria tocar e eu estou lá na formação, é outra pessoa que está ali. É um personagem, que está ali para ser feliz, está ali para interagir com o público. Quando eu vejo uma criança, uma menina, olhando para mim com os mesmos olhos que eu olhava quando eu era pequena, aquilo para mim é mágico”, lembra Viviane. “Eu não consigo mais viver hoje sem o samba. Eu saio da ala das passistas, depois vou para a das baianas, para a velha guarda e pretendo ficar até quando as minhas pernas aguentarem”.
Já Rayane não consegue achar explicações para expressar o que sente pelo samba, ao que prefere profetizar a eternidade.
“Eu sou apaixonada pela escola que eu defendo, e acho que vou morrer com o símbolo do Salgueiro em cima do meu caixão. Mesmo que um dia aconteça alguma coisa e eu tenha que sair da escola, eu sou eternamente apaixonada. Não tenho outra escola no coração […] É uma paixão inexplicável, só a bateria pode explicar”. Com informações do Sputnik Brasil.