Promotoria diz que réus assumiram riscos na Kiss com pirotecnia, lotação e espuma
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O julgamento do caso entrou em sua fase final nesta quinta (9), com o início do debate entre acusação e defesa
Depois de nove dias ouvindo testemunhas, vítimas, informantes e réus sobre a tragédia que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos na boate Kiss, em Santa Maria (RS), o julgamento do caso entrou em sua fase final nesta quinta (9), com o início do debate entre acusação e defesa.
Com duas horas e meia para expor seu caso, o Ministério Público do Rio Grande do Sul defendeu a tese de que os quatro réus por homicídio e tentativa de homicídio simples por dolo eventual assumiram os riscos que acabaram resultando na tragédia.
Para a promotoria, os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente de palco) assumiram esse risco ao fazer o show com pirotecnia, usando artefatos inadequados para o local e sem precauções. Já os sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, por terem a casa acima da lotação permitida e por terem instalado uma espuma no local que liberou gases tóxicos.
“Precisamos dizer que incendiar uma boate lotada de gente é crime doloso, porque isso vai proteger nossos filhos, nossas filhas”, defendeu em sua fala o promotor David Medina da Silva, o primeiro a falar.
Ele defendeu a decisão da Promotoria de acusar apenas os quatro réus pelo crime –um inquérito da Polícia Civil sobre o caso apontava mais responsáveis.
“Crime doloso, homicídio doloso, tem quatro pessoas, os que acenderam, botaram fogo e os que criaram uma situação totalmente impossível de sair, um labirinto, que era a Kiss, como falaram no processo. Quando alguém dá um tiro numa pessoa, este pratica homicídio doloso. Agora, quem não fiscalizou essa arma não vai estar ali no processo pelo crime doloso. Pode estar em outro processo”, afirmou.
O promotor citou a música “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, enquanto mostrou fotos dos jovens mortos na Kiss.
“Tenho vergonha [de pedir justiça] porque é impossível fazer justiça a esses pais e a essas mães. Porque justiça numa concepção clássica, é dar a cada um o que é seu, é isso que diz Aristóteles. Como que nós vamos dar o que é seu para cada um desses pais, dessas mães? Quem eles vão abraçar no Natal? Tem muita dor do lado de lá”, afirmou apontando para a plateia.
Neste momento, pais e mães de vítimas e sobreviventes se levantaram e formaram um círculo de mãos dadas. Eles se mantiveram em silêncio, já que não podem se manifestar oralmente dentro do salão do júri, para não influenciar os jurados.
Já a promotora Lúcia Helena Callegari mostrou um depoimento gravado do segurança André de Lima, que trabalhava na Kiss no dia da tragédia.
O homem confirma no vídeo que, por ordem de Spohr, segurou as portas da boate depois que as chamas tinham começado, e que o então sócio da Kiss inclusive o auxiliou na tarefa. Ele afirmou que nenhum deles tinha percebido o incêndio lá dentro quando fizeram isso.
A defesa de Spohr disse que assim que o empresário percebeu o fogo, liberou as portas.
O depoimento foi prestado à Justiça Federal, em abril de 2015, em uma ação que a União moveu contra os sócios da Kiss pedindo ressarcimento de valores pelos gastos que teve com a tragédia, segundo o Ministério Público. O segurança morreu em decorrência da Covid-19, também de acordo com a Promotoria.
A promotora defendeu em sua fala que os réus sempre contaram com a sorte, sem assumir as precauções que eram exigidas em lei, e afirmou que tiveram conduta indiferente durante a tragédia. Ela citou dois funcionários do supermercado Carrefour, que teriam dito que os músicos da banda foram os primeiros a chegar ao estacionamento, do outro lado da rua, e outras duas testemunhas que teriam dito que Hoffmann não ajudou a carregar vítimas.
“É essas pessoas que temos que julgar aqui, insensíveis, preocupadas com o patrimônio, preocupadas com pagamento de comanda. Duas pessoas que não se preocupavam”, disse ela.
Sobre o uso de artefatos pirotécnicos, apontados como a origem do incêndio, a promotora apresentou testemunhos de que a prática eram comum tanto nos shows da banda, quanto nas boates Kiss e Absinto (também de Hoffmann).
Ela citou ainda o fator da espuma, que levou a mortes rápidas por asfixia, e apontou que a cola usada também seria inflamável.
“Autoridades nunca souberam, nunca foram avisadas. O que se tem no processo é documento de que nunca foram avisadas que existia esse tipo de comportamento. Sempre se acreditou na sorte. Se acreditava que nunca ia acontecer”, afirmou ela.
Imagens da tragédia, como corpos sendo carregados em caminhões e alinhados em colunas no chão do CDM (Centro Desportivo Municipal), o Farrezão, em Santa Maria, onde foram colocados para identificação, também foram exibidas no plenário onde familiares e sobreviventes acompanhavam sentados em círculo, apoiando-se uns aos outros, em silêncio. Alguns deixaram o local, amparados por profissionais.
Após a acusação, os debates seguem com as falas dos advogados de defesa dos réus, cada um deles tendo 37 minutos e 30 segundos de fala.
A votação dos jurados, respondendo questões sobre sete casos de homicídios e sete casos de tentativas, para cada um dos quatro réus, acontece na etapa seguinte. O número de casos reduzido foi definido devido ao cálculo de tempo que seria necessário para avaliar todas as vítimas, segundo o juiz Orlando Faccini Neto.
O júri da boate Kiss já é o mais longo da história do Judiciário gaúcho. O processo foi desaforado de Santa Maria a Porto Alegre a pedido de defesas que questionaram se a cidade onde ocorreu a tragédia teria júri imparcial, já que boa parte da população foi afetada.
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