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Teatro da pandemia escancara um novo absurdo


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Teatro da pandemia escancara um novo absurdo

| IDNews® | São Paulo | Folhapress | Via Notícias ao Minuto |Brasil|

É o tipo de fusão entre real e ficção, público e privado que parece estar no DNA dos experimentos de teatro virtual surgidos nos meses de quarentena

IDN – Famosos

O ator Marat Descartes abre o espetáculo virtual “Peça” lavando a louça. Pede desculpas pelo atraso, vai até o quarto das filhas para pedir silêncio, dá um beijo na mulher e se esconde no banheiro, lugar que, ele confidencia ao público, tem a melhor conexão de internet da casa.

Quem acompanha seus passos do outro lado da tela não tem certeza se a tal “Peça” começou. Uma dúvida que, em vez de ser esclarecida, só cresce à medida que o monólogo avança. Afinal, as cenas que testemunhamos acontecem ao vivo ou foram gravadas semanas antes? O ator está sozinho, como deu a entender naquele início, ou tem ajuda de alguém para operar as câmeras?

É o tipo de fusão entre real e ficção, público e privado que parece estar no DNA dos experimentos de teatro virtual surgidos nos meses de quarentena. Em parte porque, em geral apresentadas em espaços domésticos, essas peças trazem a autenticidade do faça-você-mesmo, traduzida nos banheiros adaptados a cenários e nos familiares que se desdobram em contrarregras e elenco de apoio.

Mas sobretudo porque, encenados nas mesmas telas de computador e de celular com que nos comunicamos com o mundo hoje, elas transformam radicalmente o acordo entre palco e plateia no qual o teatro se ancora –de um tempo e um espaço compartilhados.

Afinal, nos espetáculos presenciais, por mais absurdo que determinada situação pareça, “você sabe que, se não foi acionada uma saída de emergência e nenhum funcionário apareceu, tudo faz parte do espetáculo”, afirma Ferdinando Martins, professor de artes cênicas da Universidade de São Paulo, a USP.

Mas não há saídas de emergência em “Peça”, espécie de meditação sobre esses tempos conturbados. Ali, a tensão entre representação e vida real chega ao ápice quando Descartes, mergulhado num pesadelo febril, tira o carro da garagem e dirige até o Teatro Cacilda Becker, a algumas quadras da sua casa.

Enquanto isso, o espectador isolado em casa, sem ter noção se o que assiste está de fato acontecendo, imagina as consequências mais desastrosas -e se o ator for parado pela polícia, ou bater o carro?

Descartes esclarece que a ação é realizada ao vivo. “Bati o pé para que não fosse gravado. E acho que é esse o grande barato. Ir ao teatro, mostrar que ele está fechado, que estamos nessa situação”, diz.

“Bater na porta daquele teatro e não ter um espetáculo acontecendo, isso é um gesto”, concorda a diretora, Janaina Leite. “Me interessa sustentar a tensão. E que o artista, não só o público, também esteja numa posição instável.”

O convite para Leite assumir a direção, aliás, teve a ver com essa vontade de borrar teatro e a própria experiência, conta Descartes. Algo que a atriz, diretora e pesquisadora vem fazendo há anos.

Leite já encenou o fim do casamento, em “Festa de Separação”, e reviveu o luto pela morte do pai em “Conversas com Meu Pai”. No ano passado, subiu ao palco ao lado de um ator pornô e da mãe de 73 anos para refletir sobre sexualidade e maternidade em “Stabat Mater”. Em todos, usava gêneros que impregnaram as artes cênicas nos últimos anos, como a autoficção e o documentário cênico.

Formas que, diz Leite, sofreram um verdadeiro curto-circuito com a pandemia. “Já estávamos pensando em um teatro do real, que trazia esse debate entre realidade e ficção. Mas, quando colocamos isso dentro da internet, dessa produção vertiginosa de real que as pessoas fazem sobre si mesmas, é uma provocação enorme para a arte”, ela afirma.

Ou, nas palavras de Descartes na peça, “isso tudo é vida, ou a cena de uma peça?”. “Se eu desligar isso, tudo volta a ser vida real, será? Se eu sair do Face, do Insta, de tudo, a gente deixa de existir?”

Essa confusão entre o real e o ficcional nas telas é ainda mais evidente em “Tudo o que Coube numa VHS”, experimento teatral do grupo pernambucano Magiluth.

Uma história de amor contada a partir de fragmentos de memórias, ele é feito com um participante de cada vez, e numa série de redes sociais -YouTube, Instagram, Spotify, email. “Tinha vontade de mandar uma cerveja para as pessoas durante a peça, mas ia ficar muito caro”, diz ator Giordano Castro.

Como “Peça”, o trabalho do Magiluth também põe o participante num lugar de incerteza, convidando o espectador a ora assumir o papel de observador, ora de personagem.

Mas a relação entre real e imaginado se torna mais complexa uma vez que essa interação é direta e conduzida no meio mais cotidiano possível, o WhatsApp. Esta repórter, por exemplo, percebeu com certa surpresa ao fim do experimento que tinha acabado de trocar memes com um personagem ficcional.

Mesmo que nem todos interajam de um jeito tão ativo, Castro diz que usar as plataformas acabou conseguindo traduzir para o meio virtual aquela presença que está no cerne da experiência de ir ao teatro. “A construção estética do Magiluth sempre levou muito em conta como chegar no público, e percebemos que, agora, toda comunicação tem acontecido pelas redes sociais.”

Grupo Magiluth de teatro em cena da peça “Dinamarca”, inspirada em “Hamlet” Bruna Valência/Divulgação Grupo Magiluth de teatro em cena da peça “Dinamarca”, inspirada em “Hamlet” ** Também fez sucesso de público, a tal ponto que estendeu a temporada em um mês e aumentou a oferta de horários por causa da procura –foram mais de 1.600 apresentações, recém-encerradas. Uma segunda temporada do projeto deve ser anunciada em breve, com a mesma trama, desta vez narrada a partir de outros pontos de vista.

Mas, afinal, isso é teatro? Mesmo que a princípio Magiluth tenha definido “Tudo o que Coube numa VHS” como um experimento sensorial, Castro argumenta que ele só faz sentido porque usa as bases do teatro, entre elas a dramaturgia, a construção de uma atmosfera e, é claro, a relação com o público.

Já Janaina Leite e Marat Descartes relutam em falar em teatro, embora o último admita que os rituais que ele costuma fazer antes de pisar no palco parecem ter sobrevivido nessa nova forma. “Vamos assumir que é um cinema ao vivo”, diz o ator.

O professor Ferdinando Martins era um dos que, no início da pandemia, defendiam que teatro virtual era uma contradição em termos. Mas, à medida que espetáculos como esses nasceram, mudou de opinião.

Ele lembra que nem tudo o que está disponível na internet, como os espetáculos filmados, se enquadram nessa definição. Mas em experimentos como “Peça” e “Tudo o que Coube numa VHS”, o convívio que diferencia as artes cênicas das demais acontece, embora atores e públicos já não ocupem um mesmo espaço físico.

Mais importante, diz Martins, pode ser que esses experimentos representem a entrada, enfim, do teatro no século 21.

“Estamos rompendo com uma tradição teatral que foi montada na virada do século 19”, ele diz. “As pessoas têm pensado muito no que se perde com essas novas formas. Mas o que se ganha? Não é um bom momento também para repensar se essas categorias, com as quais olhamos o teatro por tantos anos, continuam sendo válidas?”

PEÇAQuando: Quinta a domingo, às 21hOnde: No site youtube.com/corporastreadoPreço: GrátisClassificação: 16 anosDuração: 50 min.

Beto Fortunato

Jornalista - Diretor de TV - Editor -Cinegrafista - MTB: 44493-SP

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